ONeill, o homem atravessando o abismo. Entrevista com George C. White

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988/10/01. Aguardando revisão.

O diretor de teatro e professor norte-americano de dramaturgia George C. White (acompanhado em sua visita ao Brasil por sua esposa Betsy) tem aquela exuberante simpatia humana que os que conhecem os Estados Unidos reconhecem como uma das mais agradáveis características do seu povo. Sorridente e de uma contagiante simpatia, Mr. White não alardeia seu impressionante currículo artístico e universitário. Começou aos 19 anos de idade, no Festival Internacional de Ballet em Nervi, na Itália, já frequentou o Shakespeare Institute na cidade natal do gênio inglês, em Stratford-upon-Avon, bem como a Universidade da Sorbonne, em Paris.

Mr. White faz parte de inúmeras organizações nacionais e internacionais ligadas ao teatro, atualmente é presidente e fundador do Eugene O' Neill Theater Center junto à prestigiosa Universidade de Yale, na Costa Leste dos EUA. Caso talvez único na história das relações teatrais, ele dirigiu na China a produção local de Anna Christie, em Pequim (Beijing, na grafia moderna) e no ano passado assinou um contrato de cooperação entre artistas e diretores norte-americanos e russos na URSS e veio ao Brasil durante uma breve temporada para falar sobre Eugene O'Neill a universitários brasileiros em várias cidades.

Profusamente condecorado pela Suécia, pela França e com vários prêmios importantes em seu país natal, ele concedeu ao Caderno de Sábado a seguinte entrevista, tornada curta por ter ficado preso no caótico trânsito de São Paulo:

Começou agora um revival de Eugene O'Neill nos Estados Unidos?

Não exatamente, embora a atenção geral se tenha voltado muito para ele, no centenário de seu aniversário. O'Neill passa sempre por um ciclo de redescobrimentos, de revivals, como quando se encena uma peça dele em grande estilo, na Broadway, por exemplo, aí todos se lembram dele. O que eu noto é que neste ano as produções de suas peças como que se normalizaram. Como ele morreu em 53, pode-se falar de um revival mesmo na década de 70 e a mise-en-scène de A Moon for the Misbegotten.

Mas um drama como A Long Day's Journey into the Night não vem sendo encenado com grande frequência?

Sim, a partir de 1956, com Frederick March e Jason Robbard, depois é que veio a mais famosa, com Katharine Hepburn no papel da mãe. O que eu acho é que a produção dessa peça colocou O'Neill definitivamente no panteão dos supremos dramaturgos em escala mundial, mas um verdadeiro redescobrimento, um autêntico e duradouro revival de O'Neill, como um de Shaw, não, creio que tenha havido.

E que Interesse, que relevância O'Neill teria para nós hoje em dia? Apesar de muito da sua criação teatral parecer ultrapassada já, e muito dela realmente já está datada, a verdade é que O'Neill lida tão profundamente com as emoções humanas, com o amor e o ódio concomitantes, com a imbricação vital entre o ser humano e sua capacidade de sonhar que quando se mata o sonho mata-se o ser humano logo em seguida, o tema eterno da culpa e da busca do perdão, tudo isso é universal, universalmente válido e compreensível e não cessará de comover o público, não importa se outras peças e outros trechos de peças já estejam ultrapassados. O'Neill possui uma força bruta, enraizada fortemente no elemento dramático e às vezes até melodramático. Por isso suas peças continuam a falar à nossa sensibilidade e manterão esse poder enquanto houver seres humanos.

Você acha que ele consegulu seu intento de fincar raízes no drama da Grécia antiga e projetar no palco os anseios do povo americano?

Creio que sim. Não acho que ele o tenha conseguido tanto em Mourning Becomes Electra, baseada diretamente na Orestéia de Ésquilo, nem talvez em Desire Under the Elms, mas provavelmente nas peças que escreveu mais tarde: A Touch of the Poet e A Long Day's Journey Into the Night têm a força telúrica de Eurípedes...

Com a mesma carga de fatalismo e de Moira, o Destino inexorável?

Exatamente.

A Impressão que se tem é a de que os personagens são marionetes...

É isso: as pessoas não conseguem se desvencilhar das malhas do Destino!

Seja o que for: incesto, infanticídio... Ele mesmo, O'Neill, viveu uma vida trágica...

Exato e talvez ele próprio tenha escrito o roteiro de sua vida...

Mas, se se puder chamar assim o seu estilo de um "realismo trágico", mesmo então O'Neill não tem nada em comum com os dramas descritos nos romances de Dreiser, determinados por uma visão de esquerda e que atribui o drama a fatores econômicos, por exemplo?

Sem dúvida que não, embora quando muito jovem O'Neill se tenha juntado a grupos de esquerda...

Apesar de ser um irlandês católico...

Ele abjurou do Catolicismo assim que leu Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Aliás, por volta de 1917, ele passou por uma fase muito radical de esquerdismo, de socialismo, mas à medida que amadureceu ele, eu não diria que se tornou centrista, mas O'Neill realmente deixou de se interessar por tais idéias políticas: cansou-se delas, elas passaram a aborrecê-lo...

Portanto ele nunca escreveu peças panfletárias, políticas?

Pode-se até discutir se algumas de suas peças iniciais, que têm o mar como tema, são políticas ou não, é uma questão aberta ao debate, mas está fora de dúvida que ao achar maçantes as teorias marteladas pela esquerda ele se convenceu e acho que com razão! de que uma peça panfletária dura muito pouco tempo...

Clifford Odets e suas peças estão aí para provar isto, não?

Exato. O leitor ou quem assiste a essas peças panfletárias pensa: ah, então era assim que as coisas estavam, entendo, como as peças do "realismo soviético", é a mesma coisa... A propósito: você já ouviu falar de diferença entre uma comédia e uma tragédia, seguindo o lema do "realismo soviético"? É assim: se você tem a garota e dispõe de tempo para estar com ela, mas te falta o lugar, isso é comédia. Mas se, ao contrário, você tem a garota e tem tempo, mas não tem o lugar, isso é tragédia. E no caso de você dispor de todos os três, a garota, o tempo e o local, mas está na hora de ir a um encontro de doutrinação política ou a um encontro do Partido, isso é "realismo socialista". (risos)

Agora suponha que se dê um salto no tempo e se examinem as peças de Tennessee Williams, com sua obsessão sexual etc.: há alguma relação entre elas e as peças de O'Neill?

Ah, sim, porque O'Neill foi pioneiro em abordar temas e situações nunca abordados antes, considerados tabu.

Como o mundo dos marginais, dos bêbados, das prostitutas, dos drogados, dos alcoólatras...

Todo esse bas-fond banido estritamente do teatro antes dele e além de tudo Tennessee Williams, eu creio, instaurou um teatro em muito semelhante ao de Eugene O'Neill: o teatro autobiográfico. Basta ver Glass Menagerie (À Margem da Vida), inspirada diretamente em sua própria experiência pessoal com a família e eu chego a dizer que a heroína trágica de A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo), chego a dizer que Blanche Dubois é ele, Williams.

Como Tennessee Williams se projetou em várias outras personagens femininas, não é?

Acho que está fora de dúvida que sim.

E tudo isto não provém de uma origem vitoriana, puritana, como aquele lema protestante de que "o pagamento do pecado é a morte"?

Certamente, é daí que nós viemos, essa é tradição puritana dos Fundadores da Pátria que nós herdamos. As peças escritas nos Estados Unidos se dividem, grosso modo, entre as que respeitam esses limites puritanos e as que os transcendem, como O'Neill e Williams fizeram. O poeta E. A. Robinson, em um poema seu, se refere à Nova Inglaterra (New England, a parte nordeste dos Estados Unidos) como sendo a região em que o vento sempre sopra rumo ao Norte e ao Nordeste, onde as crianças aprendem a caminhar com os pés gelados pela neve, a paixão treme jogada num canto a tricotar, enquanto a consciência sempre é a única que tem direito à cadeira... Essa é a nossa tradição...

E que outros elementos, na sua opinião, O'Neill trouxe à dramaturgia norte-americana?

Bem, acho que fundamentalmente ele trouxe um aprofundamento da análise psicológica e dramática, que se passou a fazer a partir dele, de cada protagonista de uma peça nos Estados unidos, a quebra de tabus e, junto com Dostoiévski, a ousadia e o direito de apresentar diante do público as emoções humanas em estado bruto, sem retoques nem refinamentos intelectuais.

Um pouco à maneira também de Gorki (amargo, em russo)?

Certamente, de Gorki, de Dostoiévski, de Strindberg e até de Shakespeare: O'Neill tomou emprestado alguns elementos dramáticos a todos eles, incorporando-os à sua visão filosófica e teatral. Não podemos esquecer que, no início da década de 20, o mundo estava em meio a um indescritível turbilhão econômico, político, social: a Revolução Russa, de 1917, o término da Primeira Guerra Mundial em 1918, que significou para nós americanos a nossa perda da inocência; lá estávamos nós, de repente, enterrados numa guerra que não tínhamos começado, na Europa, e estávamos chamados a desempenhar um papel-chave nela.

         E logo sobreviria a Grande Depressão, na Alemanha da República de Welmar e nos Estados Unidos do crack da Bolsa, em 1929?

Exato! E aí surge um homem, capaz de refletir, pelo menos parcialmente, como todos esses fatores afetavam o coração humano: O'Neill.

Como você deixou claro, ele abandonou o catolicismo e abraçou as teorias de Nietzsche, essa mudança o aparentou a Camus e a uma visão existencialista da vida?

Acho que ele abandonou o dogma católico em prol do dogma de Nietzsche.

Mas O'Neill estava, pelo menos antes, profundamente preocupado com a idéia de Deus, não estava?

Sim, mas agora ele via o ser humano como Nietzsche o vira: atravessando o abismo, pisando numa corda estendida entre os extremos da animalidade e do super-homem. E Deus está morto?

Sim, mas...

Era uma atitude como a de Beckett, de desespero, de angústia?

Muito parecida com a de Beckett, sim. Como lamento não termos tempo para ficarmos conversando duas horas ou mais sobre esse assunto! Porque uma coisa que eu acho e que eu queria dizer é a seguinte: eu acho que mesmo compartilhando muito de Gorki, de Nietzsche, de Beckett, O'Neill mantém uma fagulha ao menos de seu catolicismo inicial: a esperança, por mais tênue que seja. As tragédias reais da sua família, a mãe que estava destinada a ser freira e que se casa com James O'Neill e se torna uma drogada, isso é o castigo que ela recebe por ter fugido à sua vocação religiosa. Eu acho que todos esses acontecimentos da vida pessoal de O'Neill desempenharam um papel importante na sua visão do mundo. Além do que não acho possível que uma pessoa que tenha acreditado tanto no próximo, nos demais seres humanos, possa ter extirpado completamente o amor a Deus de seu coração.

Ele concebe os seres humanos como um reflexo de Deus?

Exatamente, e sua "aliança" com Nietzsche, que ele proclamou como seu "deus", aconteceu quando O'Neill tinha 18 anos de idade: era uma tendência, digamos, romântica da parte de O'Neill, convenhamos...

Você se lembra, certamente, daquele projeto que ele tinha de levar, ininterruptamente, um ciclo de 11 peças, essa idéia de um teatro contínuo não influenciou ou pelo menos não tem relação com a mesma concepção de Bob Wilson?

Sem dúvida! E o interessante é que, como autêntico pioneiro, O'Neill fraqueja frequentemente, cai no que é kitsch, de mau gosto, e quando eu disse isto em Belo Horizonte foi como se eu tivesse destruído um ícone, as pessoas ficaram literalmente assombradas...

Minas Gerais é uma parte muito conservadora do País...

Foi o que aprendi lá, mas adorei Minas, pena que eu não tenha tido tempo para ir até Ouro Preto desta vez...

Há mais uma pergunta que eu queria lhe fazer: não, não é sobre a indignação que se apoderou de Eugene O'Neill quando sua filha, Oona, se casou com Charles Chaplin...

Chaplin era, na verdade, dois meses mais velho do que ele e Oona, àquela época, tinha apenas 16 anos de idade! (risos)

É verdade, mas o que eu queria perguntar é se a seu ver é lícito que muitos diretores tomem a liberdade de cortar cenas de suas peças, alegando que são muito longas, démodées, inúteis para se compreender o contexto?

Francamente, acho que sim, quando os cortes são bem-feitos e respeitam a essência de sua obra. Ao mesmo tempo que não vejo suas peças como algo santificado, intocável, por outro lado confesso que acho dificílimo mexer nelas. Cortar, abreviar, sim, mas como? Tudo está tão fortemente entrelaçado que às vezes tirar uma cena leva ao colapso todo o resto armado quase que arquitetonicamente por ele, compreende?

E a sua única comédia, Ah, Wilderness!, o que você acha dela?

É a minha preferida. Sei que A Long d Day's Journey into the Night é sua obra-prima, é lógico, mas Ah, Wilderness! me parece abranger todo o espírito desse país chamado os Estados Unidos, a filosofia de seu povo e o que nós somos, está tudo contido nessa peça: romantismo, otimismo, crença no próximo, esperança em dias melhores.

Ah, Wilderness! é superior a Our Town (Nossa Cidade) de Thornton Wilder?

A Our Town também é belíssima, é um poema, mas ao passo que é uma peça intelectual; a peça de O'Neill vem diretamente do coração, reflete muito mais a concepção de vida do povo americano.

Se ele vivessse hoje, O'Neill estaría desapontado com a América que veria?

(Depois de uma pausa) Temo que sim. Mas todos os artistas sempre estão descontentes nem que seja com um ínfimo detalhe. Você pode criar a utopia mais perfeita, ao colocar o artista diante dela, ele começará a reclamar: "Ah, essa história de 'utopia', francamente!"

Algumas peças de O'Neill são talvez mais difícels de compreensão e de encenação como Emperor Jones e The Hairy Ape, não?

Sim, mas ambas insistem na vacuidade do poder e no lema de que todo poder corrompe e o poder total corrompe totalmente. Mas note que O'Neill foi o primeiro dramaturgo a insistir que um ator negro desempenhasse o papel do Imperador Jones, até então não havia papéis para atores negros... A não ser para Al Johnson, pintado de negro?

Isso, mas O'Neill especificou que o papel fosse exclusivamente de um ator negro; foi outro pioneirismo dele.

Não me lembro quem disse, talvez tenha sido Scott Fitzgerald, mas costuma se dizer que "nas vidas americanas nunca há um segundo ato"; no caso de O'Neill isso não se deu, patentemente, não é?

Não, e já ouvi essa frase, creio que seja do dramaturgo William Inge, que se suicidou por problemas mentais, por achar que não tinha mais talento para escrever; enfim O'Neill, nas 44 peças que deixou publicadas, provou que essa afirmação não tem sentido. Afinal, apesar de todas as tragédias pelas quais seus personagens passam, há sempre uma centelha de esperança, e isso, eu creio, é a essência, ou mesmo a quintessência do ser humano, como ele o viu e representou, em sua versão norte-americana, não é?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “ONeill, o homem atravessando o abismo. Entrevista com George C. White .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.