A cadeia é o lugar da liberdade de Mihailov

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1966/08/19. Aguardando revisão.

Desde sua integração no bloco das nações comunistas, a Iugoslávia vem desempenhando um paradoxal papel histórico: o de manter uma tradição da rebelião. Fornece por isso, com regularidade, os angry young men da ideologia marxista. Tito, desafiando corajosamente as divisões blindadas de Stalin para defender uma versão nacional do Comunismo, independente do modelo e da tutela da União Soviética, é assim o primeiro Lutero dessa profunda e paulatina Reforma do Comunismo Segundo a Versão de Santo Stalin. O vice-presidente Milovan Djilas seria o candente Zola do j’accuse iugoslavo, denunciando a “nova classe” de privilegiados da era stalinista, o terror cultural, os fuzilamentos e deportações em massa da longa noite de terror confirmada por Ehrenburg em suas Memórias. Encarcerado Djilas pelas suas revelações sumamente ousadas e penetrantes, veio juntar-se agora a essas figuras históricas um novo mártir: o jovem crítico de literatura e professor da Universidade de Zadar, Mihail Mihailov. Destituído de sua cátedra e preso sumariamente, Mihailov foi acusado de “zombar de um Estado estrangeiro”, violando assim o artigo 175 do Código criminal do seu país ao escrever na revista literária Delo as suas impressões sobre uma viagem à União Soviética durante alguns meses. Confiscada a publicação, alguns exemplares chegaram, porém, ao Ocidente, onde a notícia do encarceramento arbitrário causou uma celeuma internacional que forçou o marechal Tito a abandonar a “linha dura”, comutando a pena do intelectual anticonformista. Desde então, ou seja, há dois anos, Mihailov tem sido obrigado a apresentar-se semanalmente à Chefatura de Polícia para “prestar esclarecimentos” sobre a sua atitude rebelde. Nestes dias que correm, porém, recrudesceu a intolerância da ala dogmática do Comunismo e ele foi novamente preso, agora sob acusação de pretender fundar uma revista liberal, que tornasse o socialismo “livre e democrático” no seu país. Invoca-se como agravante da sua rebeldia a carta que dirigiu a Tito, desafiando-o a dar vida à letra morta da Constituição iugoslava, que prevê as liberdades fundamentais: de pensamento, de reunião, de imprensa, de eleições sem coações, de religião e de ideologia. A condenação de Mihailov é particularmente interessante por ser sintomática de toda uma fermentação incomparavelmente maior que agitas as novas gerações não só no Ocidente, mas também do outro lado do Muro de Berlim. Uma “febre” de inconformismo com a mentira, a hipocrisia, com uma tradição oca e decrépita, com qualquer censura estatal cerceadora da liberdade criadora do artista ou da reflexão individual.

No entanto, que afirmações tão explosivas conteria o Diário de viagem do escritor iugoslavo, o seu breve relato intitulado Verão em Moscou? Escrito em estilo informal, mais como uma série de francas anotações pessoais sobre o que viu e testemunhou na União Soviética, Verão em Moscou foi mencionado raramente e sem nenhum destaque na imprensa brasileira. Inseridas, porém, num contexto histórico, essas declarações explicam o julgamento dos escritores soviéticos Daniel e Siniavsky e confirmam as eletrizantes Confissões de Penkovsky, alto funcionário do Serviço Secreto soviético, fuzilado em 1962 por ter revelado dados ultraconfidenciais aos governos dos Estados Unidos e da Inglaterra.

As indiscrições de Mihailov começam de forma pouco sensacional e resumem observações feitas por outros viajantes à Rússia de hoje, inclusive por comunistas italianos e franceses. São, quase se poderia dizer, “inofensivas”: o alcoolismo é um dos problemas capitais da sociedade soviética, havendo locais especiais onde os bêbados podem tomar antídotos contra a embriaguez (em russo: vytrezyelj); em várias zonas de Moscou e de outras metrópoles russas há perigo à noite de assaltos à mão armada, de estupros e violências; a qualidade dos manufaturados é inferior, reservando-se espécimens perfeitos só para as exposições destinadas aos estrangeiros; o jazz é popularíssimo entre os jovens apesar das proibições oficiais; o antissemitismo velado do governo determina o fechamento de escolas e teatros de língua ídiche, o termo “judeu” consta dos passaportes, etc.

Como um gráfico nervoso, as afirmações de MIhailov avolumam-se, porém, tornam-se cada vez mais comprometedoras e sinceras, causando a ira dos modernos Inquisidores, que deixaram os trajes sacerdotais para vestir os ideológicos, forma contemporânea do despotismo e paradoxalmente, contemporânea das viagens do homem às esferas siderais.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {A cadeia é o lugar da liberdade de Mihailov},
  booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
    os despotismos e os totalitarismos},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {12},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/05-paises-do-antigo-leste-europeu/00-a-cadeia-e-o-lugar-da-liberdade-de-mihailov.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1966/08/19. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “A cadeia é o lugar da liberdade de Mihailov .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.