As novas dimensões do realismo literário (A Selva de Ferreira de Castro)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1961-01-22. Aguardando revisão.

A par da obra de Fernando Pessoa, que pouco a pouco começa a ser difundida na Europa, principalmente na França, os livros de Ferreira de Castro têm recebido uma verdadeira consagração entre os leitores do Continente, mormente na Alemanha, onde A Lã e a Neve e Terra Fria obtiveram tiragens imensas logo depois de publicadas. Embora utilizada tendenciosamente por elementos extremistas - na parte comunista da Alemanha os romances de Eça de Queirós, em luxuosas edições populares (não há contradição de termos) são traduzidos e interpretados unicamente como “depoimentos contra a apodrecida estrutura burguesa e capitalista” - seus testemunhos artísticos e humanos são escritos sem partidarismos políticos a priori, destacando-se, nessa imensa galeria do sofrimento do homem vítima do homem, A Selva, fruto autobiográfico de sua permanência na Amazônia brasileira. Precedido de frases de Tavares Bastos, de Pinedo e Euclides da Cunha com referência a essa região mais solitária e inóspita do globo, esse romance, sem possuir as virtudes estilísticas de outras obras de Ferreira de Castro, retrata, porém, de maneira angustiante, a precariedade da condição humana numa área colossal de nosso território geográfico. Gostaríamos de falar de A Selva no pretérito passado, no entanto, a angústia maior que nos assalta, ao ler o relato da escravidão dos seringueiros nordestinos sem alforria no Inferno Verde, é a que derivamos da certeza de que essa situação atentatória aos mais comezinhos direitos do homem persiste, incólume, à semelhança do olvido em que caiu grande parte do Sul da Itália que Carlo Levi focalizou em suas obras magistrais, principalmente em Cristo si è fermato a Eboli, de que falamos anteriormente nesta Seção. Nas palavras evocativas e nostálgicas do autor: “Eu devia este livro a essa Amazônia longínqua e enigmática, pelo muito que fez sofrer os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E devia-o, sobretudo, aos anônimos desbravadores, gente humilde, que me antecedeu ou me acompanhou na brenha, gente sem crônica definitiva, que à extração da borracha entregou a sua fome, a sua liberdade e a sua existência”. Em seguida, no prefácio, esse amigo do Brasil, porque aponta-lhe as falhas de maneira construtiva e dedica grande parte de seu talento literário a reconstruir uma situação que deveria chamar a atenção de todos os núcleos civilizados de nosso país, Ferreira de Castro lamenta, com nobreza e sobriedade, a incompreensão de alguns brasileiros que viram no seu livro uma crítica aos senões de um país no qual pululavam os ufanistas que do seu “patriotismo” fizeram profissão ou simplesmente o identificavam com uma visão rosa e suicida de uma realidade na qual imperam, em amplos setores, a incúria, a injustiça, a ignorância e a desumanidade mais rudes. Deve-se ao descortinio de Humberto de Campos, naquela época, a compreensão exata do escritor ao divulgar esse aspecto de um Brasil desconhecido e esquecido pelas merópoles do Sul: “Tinha-se compreendido finalmente que, ao farfalhar do patriotismo, venha do Norte ou do Sul, da Europa ou da América, se soprepõe sempre, no meu espírito, uma causa mais forte, uma razão maior: a da Humanidade. A razão deste livro. Deste livro que é um curto capítulo da obra que há-de registrar o sofrimento dos humildes através dos séculos, em busca de pão e de justiça. A luta de cearenses e maranhenses na floresta amazônica é uma epopéia assombrosa de que não ajuiza quem, no resto do mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha - da borracha que esses homens tiram à selva misteriosa e implacável…”

As facetas da vida no Extremo Norte que Ferreira de Castro reproduz, com fidelidade comovida, partícipe do drama oculto de milhares de párias amaldiçoados, são aspectos de um inferno dantesco vivíssimo em pleno século XX, depois de cessado o eco bombástico dos Direitos Universais do Homem, da Revolução Francesa, da Revolução Bolchevista e da proclamação da Constituição americana, que dava aos cidadãos do Novo Mundo, o direito de “buscar sua felicidade” como lhe aprouvesse. As condições da Amazônia perduram, depois de criada a Liga das Nações, a Organização das Nações Unidas e sua instituição das Leberdades Fundamentais do Ser humano. A associação mental que faz o personagem principal, Alberto, um jovem exilado político português perdido na selva, é a que primeiro nos ocorre: “Alberto pensava, olhando de longe a cena (da chegada da”gaiola” com a nova leva de cearenses), nos navios negreiros, de outrora, ao desembarcarem escravos em plagas longínquas…” e ainda: “no barranco iam-se acumulando caixotes, sacos e barris, barris, barris, porque a cachaça era morfina para a vida triste do seringueiro”. O sistema legal de exploração dos recém-vindos, que logo os iria acorrentar para sempre à jungle, era o de endividá-los ao máximo, usando uma fórmula demoníaca quanto simples: o “látex que extraiam era-lhes pago por um preço vinte, trinta vezes inferior a seu valor real, ao passo que os mantimentos, armas, vestuário indispensável e cachaça, ópio para aquelas derrotas pessoais, eram vendidos por preços exorbitantes, de muito superiores ao que valiam. Todos os gastos semanais formavam o”talão grande” que “somado às despesas de viagem e mais empréstimos, prendia por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingênuo”. Esse entredevorar-se de seres humanos reproduz meramente a luta eterna e inclemente da Hiléia monstruosa: “Metade da selva vivia da outra metade, como se a terra não bastasse para o império vegetal e fosse necessário sugar as árvores que chegaram primeiro. Não havia ramagem que não alimentasse, com o próprio sangue, e seu parasita… Na sua mudez, aquele mundo vegetal tinha cruéis egoismos, ferocidades insuspeitadas e tiranias inconfessáveis. Viver! Viver, à sua custa ou à de outrem, era a ânsia de todo ramo, de toda a folha, por mais despersonalizada que se apresentasse aos olhos de cada um”.

A epopéia anônima dos nordestinos tragados, ano após ano pelo pantanal da Amazônia, acorrentados por dívidas inexistentes, retomava, aos olhos do observador português, a epopéia, não menos heróica, dos desbravadores portugueses que, por primeira vez, se embrenhavam pela floresta multisecular e hostil: “Prudente na sua audácia, o lusíada (Francisco de Melo Palheta, em 1723) foi remontando sempre o curso que parecia interminável - um mês atrás de outro, um esforço sobre outro esforço. Em cada curva que fechava a perspectiva, desenhava-se e crescia, subitamente, uma interrogação. Tudo era brenha e tudo era dado não admitir em função do que se não via. O estranho, vindo, com a sua ambição, de outro cenário, subia o mundo ignorado, entregando-lhe a sua vida. Mas, vencido o abaulado da margem, outra esteira flúvia se escortinava e se o via o já visto. Era sempre a mataria, a mataria e a água em amplitudes de pasmar a quem não concebesse que nos oceanos pudessem também crescer bosques mitológicos. Luz forte e crua, veemente, só irisada à hora dos crepúsculos sangrentos, que dir-se-iam a anunciação do novo nascimento da Terra, ardia sobre tudo quanto se enxergava, dando alvas projeções às grandes e impuras toalhas líquidas. Do arvoredo marginal, levantavam-se, despertados pelo invasor, grasnos estrepitosos e asas de todas as cores que logo iniciavam remígio deslumbrante… Dir-se-iam, porém isentas de presença humana aquelas solidões imensuráveis… Mas sentiam que, por detrás do continame e glauco, olhos que se não deixavam ver os seguiam atentamente, furtando-se ao arcabuzos corações que pulsavam na terra que até ali fôra livre”.

Os selvícolas caçadores de cabeças do Alto Purus, que o general Rondon tentara em vão amansar, rondavam o punhado de prisioneiros cujas vidas se esvalam ao longo degredo, se conseguiam escapar às mil emboscadas do sítio incessante que a Selva lhes armava. Febres, feras, plantas carnívoras e clima caótico, o rio-mar e sua fauna terrível, a vegetação venenosa e sobretudo o Homem criava ao redor daquele gado humano à margem da História, da Lei, da Religião, e do Direito, liames cada vez mais estreitos, que findavam por sufocá-lo, depois de esterelizar-lhe a mente e a alma. Nenhuma consciência se eleva contra aquela muralha impassiva de sofrimento e de crueldade inomináveis, só a aquiescência muda, a resignação multi-secular dos oprimidos que não oferecem como resistência nem o conhecimento de sua própria miséria, indigna de uma sociedade que crê na origem divina do homem, plasmado à imagem do Criador e irmanado a todos os seres humanos pela sua origem comum e pela canga de dor que sobre todos verga. É ao artista não aos governos nem aos cientistas nem aos religiosos que cabe a missão dolorosa de clamar no deserto e apontar para uma situação monstruosa sobre a qual pesam a indiferença, a cumplicidade e a impotência da maioria. Simbolizando a consciência da sua época, o artista rebela-se, por meio da forma e da cor, como Goya ao denunciar o massacre das tropas napoleônicas na Espanha, por meio da palavra como neste testemunho sumamente grave que Ferreira de Castro lega aos homens conscientes de nosso Século. Sobretudo, porém, A Selva é uma ferida aberta no corpo da Nação brasileira, que só será saneada quando forem saneadas as condições insalubres da relação entre seres humanos que predomina no setor Norte do Brasil.

A Selva não pode ser considerada meramente uma obra literária e uma epopéia moderna narrada de forma pujante e inesquecível. Essa obra não cria situações nem personagens, nela a fantasia se reduz a mudar os nomes dos protagonistas reais dessa árdua, áspera e estéril batalha de milhares de brasileiros pela sua sobrevivência diária. Esse romance, que supera de muito tantas tentativas infecundas de criar entre nós o “romance social”, foi escrito pela própria realidade brasileira, colhida em sua crueza aviltante para nós brasileiros, pela consciência de um escritor português, a ele ligado pelos laços de comoção humana perante a injustiça e a desumanidade.

Esse diagnóstico inquietante de uma parte do território gigantesco de um País que ora adquire consciência de seus problemas sociais e caminha, penosamente, para seus destinos maiores merece a gratidão dos brasileiros que desejam corrigir o mais rápido possível essa condição absurda. A Selva é um tributo ao que há de mais puro e de mais cristão na parte da humanidade que luta pela implantação de normas sociais condignas para o ser humano em suas relações com os seus semelhantes. E se o esquizofrênico Minha Luta de Hitler projetou sobre quase meio século a sombra aterradora da sua advertência, encerrando de forma embriônica as ameaças dos campos de concentração e dos bombardeios de Coventry, livros como este constituem, mais do que um libelo, um sintoma grávido de perigos iminentes, na época em que a fragilidade e panamericanismos tão obtusos quanto fictícios se esboroa perante realidades prementes e em que líderes insofismáveis lançam mão da violência como única medida contra outra violência multisecular e abusiva. Não esqueçamos, ao ler as páginas dilacerantes dessa obra, a íntima relação que existe entre a Literatura e a Realidade, neste nosso século em que os artistas tombam em holocausto às suas ideias e são massacrados, nos países totalitários, por revelarem uma Verdade incômoda em sua hedionda integridade. Como sublinha Merleau-Ponty, analisando a obra de Camus, “um livro significa na área espiritual, uma ação tão concreta quanto um gesto no plano físico”. É analisado sob essa perspectiva que A Selva adquire seu vigor total, como uma obra que cria um novo realismo literário, fundindo o fato e a ficção num todo coeso, que parte da consciência humana e a ela se dirige, numa unilateralidade necessária, irresistível e sobretudo ineludível.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1961) 2022. “As novas dimensões do realismo literário (A Selva de Ferreira de Castro) .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.