A guerra de João e Maria
Adolescente, o ideal do escritor paranaense Dalton Trevisan “era ser corredor de 110 metros com barreiras. Jovem de bigodinho, sonhei ser farol de dancing, o galã amado por todas as taxi-girls. Nem atleta, nem bailarino de gravatinha borboleta, meu lugar é entre os últimos dos contistas menores (a sombra ligeira de um sorriso)”. Pelo menos a corrida com barreiras do I Concurso de Contos lançado pelo Estado do Paraná, em 1967, o autor de O Vampiro de Curitiba venceu, recebendo o maior prêmio para contos da história do Brasil (10.000 cruzeiros novos) e fugindo da imprensa, alérgico de nascença a entrevistas. Num de seus raros momentos menos lacônicos (“Nada tenho a dizer fora dos meus livros. Só a obra tem importância, o autor não vale o personagem”), ele respondeu: “Vampiro eu sou, sim, mas de almas. Espião dos corações solitários. Um escorpião de bote armado, eis o contista”. Os corações solitários já tinham sido sugados de seu sangue na coletânea que contém três de seus contos premiados – Desastres do Amor, lançado no ano passado. Agora, Dalton Trevisan arma o bote em torno do mesmo casal fundamental, João e Maria, em seu novo livro, publicado na semana passada pela Editora Civilização Brasileira (177 páginas). Os mesmos amantes, namorados, noivos e amásios do livro anterior transferiram para o Inferno a domicílio do casamento suas trágicas e hilariantes escaramuças amorosas.
Os resultados podem ser cômicos: em “Devaneios do Professor de Filosofia”, a batalha se trava entre Eros e a prisão de ventre, entre a esposa que combate o intestino preguiçoso com “simpatias” e o marido demasiado ardente. Ou a guerra pode atingir o estágio de uma tortura de décadas como em “O Crime Perfeito”, com a Maria que mata o marido aos poucos, numa longa galeria de megeras não domadas. Outras vezes, como em “A Batalha dos Bilhetes”, o conflito é acompanhado como um boletim da frente militar, a partir do momento em que o marido tirânico deixa “ao pé do Buda dourado, em caprichosas letras de forma”, um bilhete hostil, rompendo relações com a esposa solícita e velha. A luxúria, a crueldade deliberada, os mitos latinos da virgindade da nubente e da potência sexual do macho compõem um quadro feroz da guerra entre os sexos. Essa guerra abrange, em “Paixão Segundo João”, um homossexual tímido adorador de um colega de colégio e, em “Idílio Campestre”, um tarado sexual que estupra uma menina no campo. Sem puritanismo moralizante de autor que pune os prazeres da carne com a maldição do espírito, Dalton Trevisan, mesmo confessando-se “casado, bem casado”, conduz o leitor a uma espécie de Inferno subterrâneo: é o Dante do conto, que leva o leitor assombrado para o reino do laço indissolúvel do casamento, tétrica região onde “deixam fora toda esperança” os que nela entram. Ao contrário do Inferno medieval, porém, a morte, o assassinato, a fuga suprem a inexistência do divórcio. E essa guerra conjugal, se arrasa casais, não deixa o campo de batalha destroçado – um realismo quase naturalista e uma poesia romanticamente melancólica –, o autor curitibano confirma sua posição de melhor contista vivo da língua portuguesa.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A guerra de João e Maria},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/02-a-guerra-de-joao-e-maria.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Veja, 1969. Aguardando revisão.}
}