O gênio desigual de Eugene ONeill

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, sem data. Aguardando revisão.

Os Estados Unidos redescobrem o seu desigual Eugene O'Neill; às vezes magnífico, às vezes de um kitsch intolerável. Como informa o New York Times Book Review, suas peças completas foram publicadas em minuciosa ordem cronológica e em três volumes pela editora The Library of America, de Nova York: Complete Plays, além de se publicarem pela primeira vez suas peças inacabadas Unifinished Plays, editora Ungar, escritos inéditos ou pouco conhecidos: The Unknown O' Neill: Unpublished or Unfamiliar Writings (editora Yale University).

Além dessas importantes edições, o dramaturgo Arthur Miller comenta, no mesmo suplemento literário, as cartas escolhidas (Selected Letters of Eugene O'Neill, também da Yale University). Realmente, o único teatrólogo norte-americano a receber o Prêmio Nobel de Literatura não aparece, pelos trechos escolhidos, como um mito erguido sobre um inatingível pedestal. Eugene O'Neill se vê, em sua volumosa correspondência, às voltas com o imposto de renda, com a produção de suas peças longe da Broadway e seus critérios comerciais que ele execrava e, obviamente, em ciclotímico idílio meloso com qualquer de suas três esposas ou em luta aberta contra uma delas. A amada imortal podia, na próxima carta, ser tachada de "a bêbada" ou a idiota congênita que lhe deu filhos cretinos e inúteis. A figura que emerge de todas essas cartas geralmente longas (O' Neill não conseguia ser sucinto nem mesmo na maioria de suas peças) é, no entanto, muito complexa e nada superficial.

Ele não só se envolvera apaixonadamente com o destino de seu país e do mundo em seu tempo como se revela um veemente anarquista. Como ele exclama incrédulo as pessoas podiam acomodar-se levianamente sobre os montes de cadáveres da Primeira Guerra Mundial sem nada ter aprendido de experiência tão traumatizante? Como as pessoas podiam entregar a direção de suas vidas a governantes notoriamente corruptos e secretos traidores de seu próprio povo? "Entregando-se nas mãos das gananciosas classes dominantes capitalistas, tão burras que não conseguiam ver que sua ganância desenfreada estava devorando a eles mesmos?" Como se vivesse no Brasil da República de Pericumă de hoje, de fétida decomposição das noções básicas de ética, ele lamenta "que o povo se entregue cegamente nas mãos de políticos, essa pior espécie de proxeneta que existe e os mais covardes de todos os tipos de piolhos e adoradores de seu empreguinho, os burocratas".

Mesmo em sua desesperada busca de apoio transcendente na Igreja Católica, ele era, antes de Camus e de Sartre, já um existencialista, que duvidava frequentemente da possibilidade da existência de Deus, mas confiava na coragem indômita do ser humano de resistir estoicamente às adversidades da vida e ao final inevitável da morte. Temia que a grande comédia americana (como aliás externara as mesmas idéias o romancista de Esquerda, Theodore Dreiser) era a "venda" da alma americana ao materialismo maligno, que roubava dos seres humanos sua essência espiritual. Por isso ele se enfurecia com a lerdeza de quem não compreendia que para ele "realismo" não era uma cópia meticulosa da realidade aparente, mas sim "ser fiel à essência espiritual" dos indivíduos.

Irritado com os longos ensaios, O'Neill às vezes pensava em apenas publicar seus dramas, com a ressalva: "É proibido montar qualquer destas peças". Não suportava tampouco que uma peça fosse vandalizada por um diretor vaidoso, transformando-se no involuntário veículo de qualquer Narciso de bairro, o que lhe custou rixas com muitos autoproclamados "gênios". Durante 30 anos ininterruptos de elaboração perfeccionista de seus dramas, ele passou, no final da vida, a aprofundar-se seriamente no estudo da filosofia alemă e chinesa, e nunca se mantinha num isolamento esnobe de autores que admirava como James Joyce, Sean O'Casey, Sinclair Lewis, Sherwood Anderson e outros. Foi na parte final de sua vida também que ele, melancolicamente, lamentava que tivesse desaparecido qualquer intenção mais nobre no teatro e que tudo tivesse se reduzido a um conceito mercantil de show business, de "peça que lota os teatros" e faz tilintar a máquina registradora dos produtores.

De forma comovente, estas cartas mostram que seu pessimismo e mesmo seus surtos de desespero cediam lugar ao motivo que era o imperativo moral kantiano de toda a sua vida e sua extensa criação: manter um ideal, por mais bobo e irreal que essa atitude pudesse parecer no mundo deformado de hoje, um ideal que ele escrevia com maiúsculas: o Grande Destino do Homem, longe da sordidez, da pusilanimidade e da mentira que possam, por vezes, empanar a visão desse ideal supremo.

O teatro de Edward Albee

(10 páginas datilografadas inéditas numeradas de 2 a 11 – falta a primeira página sem data)

[...] sufoca seu brilhante talento no alcoolismo e na mediocridade elegante de Holywood, vítima consciente do materialismo esmagador de uma estrutura econômica e social impiedosa. Essa fundamental desavença atinge uma nova veemência na era atual em que o inconformismo com o status quo americano passa a ser uma das constantes do pensamento literário estadounidense. Mas embora aparentemente diversa da rebelião dos jovens coléricos ingleses, a rebelião americana é ela também uma reviravolta contravalores estabelecidos de um país historicamente jovem e acossado pelo mesmo processo de crescente esterilização dos valores humanos através da tecnologia avassaladora e do abandono de normas éticas que Pinter despreza na era atômica. Por que os formuladores do veemente protesto à american way of living insurgem-se contra alguns elementos ancestrais da cultura e da psique americana. Surgidos de uma concepção religiosa ideal, os Estados Unidos não nasceram como a América Latina à mercê da cupidez de povos saqueados de riquezas e populações nativas das Américas nem constituíram o símbolo mítico de um Eldorado fabuloso perdido nas selvas da Amazônia ou nas montanhas de prata de Yucatan ou do Peru. Ao contrário: os Pilgrem Fathers que fundavam uma nova pátria deste lado do Atlântico vindos da Inglaterra criavam aqui um reino mítico de bases solidamente religiosas, enraizando o Puritanismo com arquitrave de todo o edifício social e espiritual da América do porvir. Um Calvinismo acentuado de recusa de todos os valores materiais, de repulsa ao sexo, à diversão, ao álcool, de um culto quase fanático do trabalho, da ação, e de uma austeridade quase mórbida, um tal tipo de conceito religioso traumatizou e em parte estancou todo um desenvolvimento normal de uma psique nacional. Decorrendo dessa concepção puritana acentuou-se o valor sobrenatural do esforço individual dos pioneiros que dizimavam as populações índias e contavam somente com seus recursos individuais para domar uma natureza agreste e rude em meio aos desertos do Arizona ou do litoral inóspito da Nova Inglaterra açoitada pelos ventos gélidos do Norte. Em meio à vastidão cósmica de uma terra sem fronteiras, de um espaço gigantesco incomparavelmente maio que o da Europa ancestral, o homem americano comungava unicamente com a natureza, isolado de uma vida comunitária construtiva. E um novo conceito de tempo veio associaar-se a essas novas dimensões do espaço. Numa terra sem tradições fixas a fluidez caracteriza todas as coisas – a fluidez das classes sociais, das origens étnicas, a mobilidade permanente de milhões de pessoas que mudam de carro, de casa, de aparência, de cidade como numa busca frenética de uma satisfação inacessível. E tolhido pelo labor material da rude construção de uma nação, o homem pouco tempo tinha para dedicar ao cultivo das artes e das letras, tarefa relegada à mulher, que traria aos Estados Unidos a marca inconfundível do maior matriarcado talvez de que reza a História. O americano encontra-se então equidistante de uma angústia existencial sôfrega e de um otimismo juvenil e confiante, presa desse antagonismo fundamental que dilacera a sua personalidade. Abstraindo-nos de um autor exponencial da categoria universal de um Faulkner – que reinterpreta em termos absolutos a saga do Sul dionisíaco, aristocrático, derrotado, mórbido, satânico e iluminado pelo gênio – a literatura americana é um pêndulo que oscila entre o aspecto romântico da América utópica celebrada por Thorton Wilder, por Mark Twain e a América trágica, densa, violenta e comovente de um Theodor Dreiser, de um Fitzgerald, de um Melville ou de um Saul Bellow. Sem o apoio tácito da sociedade com que conta o intelectual na França, na Espanha, na Alemamha, o escritor americano não conta com o prestígio da sua presença e a sua opinião, curvando-se à alternativa da industrialização da cultura em todos os seus aspectos ou o ingresso no magistério universitário naqueles curiosos cursos de formação de escritor peculiares ao currículo das universidades do Estados Unidos. Ora, diante deste quadro sucinto e composto de antíteses, é fácil compreender as deformações sociais que a sensibilidade dos seus escritores registra ao comparar o roteiro de uma América utópica inexistente com a sua corporificação real. E se a essas tensões adicionarmos as que caracterizam toda a nossa era – de comunicações de massa por meios cinéticos como a televisão e o cinema – compreenderemos claramente o dilema de sobrevivência que os Estados Unidos formulam para o escrito atual.

E no setor do teatro, serão integralmente válidas essas mesmas premissas que bifurcam a criação da prosa americana? De forma ainda mais acentuada, pois embora o dramaturgo americano possua na língua inglesa os mais nobres antecessores do teatro – desde Shakespeare e o teatro Elizabetano até o teatro britânico contemporâneo – no entanto, essa herança incomparável em todo o Ocidente lhe foi negada em parte pelo veto puritano que encarava o teatro como manifestação diabólica de volúpia e perdição, lhe foi negada pela predominância maciça do cinema feito em Hollywood e que esmagou a concorrência tímida que o teatro lhe fazia antes do advento do cinema falado. E da mesma forma que a literatura reflete as distorções de um ufanismo fácil e de um comercialismo barato e vulgar, o teatro logo cristalizou uma das suas formas principais na Broadway, a encarnação puramente comercial da peça feita sob medida para agradar ao grande público com fórmulas fáceis, happy ends e um velado nacionalismo eivado de pieguismo. Mas a partir da erupção de O’Neill no cenário teatral americano delineia-se mais e mais nitidamente uma reação permanente, qualitativa, importante, do setor lúcido da arte americana contra a estandartização dos shows e peças lacrimosas que agora com décadas de atraso empresários gananciosos de lucros impõem também às plateias indefesas brasileiras. Já na década de 30, Elmer Rice dera a seus dramas de cunho expressionista uma dimensão de angústia do ser humano murado entre os valores espirituais e a tirania do lucro da quantidade, do volume. Lillian Hellman estruturara todo um teatro de denúncia ácida dos métodos sem escrúpulos e sem freios da exploração de massas anônimas por um grupo ávido de poder, Clifford Odets criara um teatro panfletário de difusão de ideias marxistas em meio à crise financeira de 1929 – todos pronunciando o advento de Tennessee Williams e de Arthur Miller.

A plateia burguesa de Boston que acolheu com apupos a primeira incursão de Tennessee Williams como dramaturgo recusava-se a reconhecer-se no espelho deformante que ele lhe erguera, com suas invectivas ferozes impregnadas de uma ironia destruidora e de um arrebato crítico que chocava duas sensibilidades vitorianas. E finalmente Arthur Miller ao diagnosticar o fracasso do sonho americano no Caixeiro Viajante medíocre, falido, esmagado por uma engrenagem inclemente contrapunha à imagem de uma América exultante publicitariamente sadia, correta e campeã da liberdade no mundo, a imagem de uma América menor, injusta, hipócrita, melancólica no seu prosaísmo e no seu materialismo selvagem. As duas figuras centrais trouxeram uma nova dimensão à expressão teatral americana: a Blanche Dubois de Um Bonde Chamado Desejo tragada pela sua própria alienação quixotesca e patética do presente e da realidade e o Willy Loman, caixeiro viajante alienado da própria experiência vital. Convulsionada por duas guerras mundiais, pela destruição de Horoshima, pela divisão do mundo na sinistra Guerra Fria de duas ideologias incompatíveis, a América assumia ao lado de sua posição de hegemonia política, econônomica e tecnológica mundial uma vulnerabilidade à crítica mesmo partida de alguns de seus mais altos expoentes, que como a própria consciência liberal e democrática americana se insurgiam contra a opressão político-econômica de continentes inteiros subdesenvolvidos e crescentemente à mercê de decisões partidas de Wall Street e do Pentágono. Era o teatro veemente, não mais puramente pessoal e mórbido, eivado de poesia e requinte de Tennessee Williams nem a virulência social de Arthur Miller, mas os novos dramaturgos que como Baudelaire na França e os expressionistas na Alemanha de inícios deste século irmanavam-se com os tarados sexuais, com os alcoólatras, com o refugo social de uma grande sociedade – as peças americanas começavam a focalizar as vítimas de comentciantes de entorpecentes, a intolerância racial, a venalidade dos grandes representantes políticos, a frustração homossexual causada pelo matriarcado e um desprezo visceral pela tutela feminina da sociedade norte-americana sufocada pelo excesso de calor materno e pela castração psicológica do pai tímido e maleável. Cada vez mais o teatro da off-Broadway, das ruelas que margeiam a grande avenida branca dos grandes teatros contrapunha à imagem estereotipada, falsa, prostituída de uma América cor de rosa a imagem telúrica, verdadeira, ampla, profunda do ser humano e sua angústia sob a forma transitória americana. Mas como argui com inteligência o próprio Edward Albee – é o teatro da Broadway que é o teatro do absurdo, não o seu teatro, o de Pinter, o de Ionesco e de Beckett. A terminologia “absurdo” parte de um julgamento burguês, que declara absurda qualquer reprodução das suas normas, absurdo seria, portanto, a sociedade que cria os marginais reconhecer-se na monstruosidade da sua própria crueldade. Como declara Ionesco ao comentar as suas próprias peças:

“No meu drama, A Cantora Careca, algumas pessoas quiseram ver uma sátira à sociedade burguesa, uma crítica à vida na Inglaterra e só Deus sabe o que mais. Na realidade, porém, se ela contiver crítica de alguma coisa, é a crítica de todas as sociedades, da linguagem dos chavões: uma paródia do próprio comportamento humano, e, portanto, uma paródia do teatro também... Se o homem não for um ser trágico, é ridículo e doloroso,”cômico”, realmente, e ao revelar o seu absurdo podemos atingir uma forma de tragédia.”

Albee comenta com seu habitual e brilahnte sarcasmo: “(a minha é uma posição semelhante). Quando me disseram, há cerca de um ano, qu eu era um integrante bem-comportado do teatro do absurdo senti-me profundamente ofendido. Profundamente ofendido porque nunca tinha ouvido essa designação antes e imediatamente julgara que se aplicava ao teatro uptown, o teatro da Broadway. Por que - eu dizia comigo mesmo – o que poderia ser mais absurdo do que um teatro cujo critério estético é mais ou menos este: uma peça boa é uma peça que faz dinheiro, uma peça ruim é a que não traz dinheiro. Um teatro cujos atores ordenam que se reescrevam peças para corresponder melhor à imagem de public relations que o público fez deles, um teatro cujos dramaturgos são levados a crer que são meras rodelinhas de uma roda imensa, um teatro que se propôs a ser imitação de uma imitação, um teatro cujos sucessos vem de Londres e constituem o contrário do chauvinismo, aplaudidos com a mesma obediência de uma colônia fiel aos representantes da coroa, um teatro no qual donos de terrenos e diretores de empresas determinam o sucesso de quantidades desconhecidas, um teatro no qual todos se coçam e mordem reciprocamente em busca de letras maiores no cartaz como se elas fossem o último refúgio à prova de bomba no mundo... O que poderia ser mais absurdo do que este teatro? Concluía eu mesmo.”

Mas se aceitarmos o rótulo convencional de teatro do absurdo como sendo o teatro de Beckett, de Pinter, de Ionesco e de Albee talvez a única formulação que acharemos para a sua origem se encontre nas palavras de Albert Camus:

“Um mundo que não puder ser explicado racionalmente, sejam quais forem os seus defeitos, é um mundo familiar ao homem. Mas num universo repentinamente despojado de ilusões e de luz, o ser humano se sente um estranho. Seu exílio é irremediável, porque lhe foram arrebatadas as lembranças de uma pátria perdida que ele lamenta tanto quanto a falta de esperança numa pátria do porvir. O divórcio entre o homem e a vida, entre o ator e seu cenário, isto é que constitui o verdadeiro sentido do absurdo.”

De acordo com a teoria de Albee então o verdadeiro teatro realista que espelha isto é a realidade do nosso tempo, é o chamado teatro do absurdo, não o que se rebaixa a atender somente aos gostos mais piegas, mais preguiçosos e irresponsáveis de um público que considera o teatro não como uma profunda meditação sobre a condição humana, mas como um meio digestivo de fuga dos problemas e preocupações prosaicos da vida diária. Todos os organismos vivos – afirma Albee – sobrevivem à custa de mudanças e embora a natureza do teatro permaneça constante, suas formas, seus métodos, seus recursos forçosamente sofrerão alterações”.

No caso específico de Albee, qual seria a sua temática principal? A da incomunicabilidade dos homens entre si, como no teatro de Ionesco? O da fuga ao diálogo, o da ameaça externa que irrompe em mundos conformistas e amorfos, como no cosmos de Pinter? Fundamentalmente nós julgaríamos que o teatro de Albee é um teatro relacionado com valores autênticos. É um teatro aparentado com o teatro de Garcia Lorca e com o teatro irlandês na sua celebração exultante do instinto, de tudo que é natural e sem elaboração em contraste com a estandardização da vida tecnológica moderna. Não é tanto um teatro antiamericanista quanto se pdoeria julgar à primeira vista, quanto um teatro de rebelião contra o tecnicismo avassalador da nossa era que demonstra os seus primeiros sintomas justamente nos Estados Unidos porque ali se encontra o maior avanço tecnológico do mundo ali se estrutura já hoje a sociedade que amanhã será homogênea e monotomamente mundial. Mas sem dúvida alguns aspectos da veemência de Albee derivam diretamente das características americanas da sociedade em que vive, como, por exemplo, a peça The Death of Bessie Smith que trata de um problema espesífico, mas não unicamente americano: o da discriminação racial contra os negros. Ou a pequena farsa The Sandbox que satiriza o matriarcada americano e o culto americano da juventude que relega os velhos a uma condição de fósseis ou párias sociais prestes a serem devorados pelo mecanismo de uma eugenia social que exige a eliminação peremptória de todos os que não correspondem ao ideal americano de juventude e dinamismo.

É, porém, em A História da Jardim Zoológico (The Zoo Story) que Albee radica em solo americano o teatro do absurdo contemporâneo. Condensam-se nos dois únicos personagens as antíteses essenciais entre o homem natural e o home estereotipado, esterilizado pelo excesso de covolização, como nas duas partes que formam A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. No Central Park de Nova York, local de coexistência puramente física dos elementos que compõem a grande metrópolis encontram-se o homem médio, da típica à áurea mediocridade, Peter, um homem de negócios conformista, casado, com um bom emprego, e que retrata até no seu aspecto exterior a sua indecisão, a sua não adesão existencial – nem gordo nem magro, nem bonito nem feio,que usa como que o uniforme de rigueur para uma pessoa da sua categoria social: paletó de tweed inglês, fuma cachimbo, tem uma aparência comedida e correta. Jerry, um atleta decadente que conforme especificação do autor “denota em seu corpo esbelto e levemente musculoso uma beleza perdida” prima não pelo aspecto de devassidão, mas pelo cansaço blasé que, porém, não extirpa completamente na sua busca dinâmica de um ideal talvez inexistente.

Como elemento ativo do diálogo que se estabelece entre aqueles dois estranhos de visões tão contrastantes sobre a vida, Jerry impulsiona a gradual revelação da vida baça, amorfa, de Peter, leitor da revista Time, possuidor de dois aparelhos de televisão, duas filhas pequenas, uma mulher e dois periquitos, um para cada menina.

Pensando em categorias e rótulos pré-estabelecidos como os personagens de Ionesco e de Pinter que falam por meio de clichês, Peter se choca com a descrição das condições de vida do marginal Jerry e relata:

“Vou te dizer onde é que vivo. No último andar de um prédio de apartamentos baratos, entre a Columbus Avenue e Central Park West. É um quarto ridiculamente pequeno e uma das minhas paredes é de papelão encerado, separando meu quarto de outro também ridiculamente pequeno, por isso suponho que os dois foram antigamente um quarto só, pequeno, mas não forçosamente ridículo. Do outro lado do papelão encerado mora um preto bicha que vive de porta aberta. Bem, não sempre, mas quando está arrancando as sombrancelhas, o que ele costuma fazer com concentração budista. Essa bicha de cor tem dentes estragados, o que é raro, e usa um kimono japonês, o que também é um bocado raro. Ele usa esse kimono para ir ao banheiro no corredor, o que acontece frequentemente. Quero dizer ele vai um bocado ao banheiro. Não me incomoda nunca, e nunca leva ninguém pro quarto dele. Fica o dia inteiro arrancando as sombrancelhas, usando aquele kimono velho e indo ao banheiro. Os dois quartos da frente no meu andar são um pouco maiores, eu acho. Mas são pequenos também. Num deles mora uma família de porto riquenhos, marido, mulher e filhos. Não sei quantos. Eles recebem gente à bessa... acho que os quartos vão melhorando de um andar para o outro à medida que a gente desce. Não sei. Espere um momento, sei que há uma moça que moa no terceiro andar, na parte da frente. Eu sei porque ela vive chorando. Sempre que eu saio ou volto da rua, sempre que passo pela porta dela, ouço ela chorando, baixinho, mas... com decisão. Com decisão mesmo. Mas eu queria lhe contar a respeito do cachorro e da dona do meu quarto. Olha, eu não gosto de usar palavras muito cruas pra descrever as pessoas. Não gosto. Mas minha senhoria, eu vou te contar, é gorda, feia, malvada, não toma banho, é misantropa, vulgar, um saco de lixo cheio de álcool. Você deve ter notado que eu raramente uso palavras profanas, por isso não consigo descrevê-la bem como eu gostaria.

Peter: Você parece descrevê-la vivamente.

Jerry: Bem, obrigado. Bem, como eu ia dizendo ela tem um cachorro, ele e ela são os guardiães da minha morada. A mulher já pe pavorosa. Fica encostada à porta de entrada, espiando para ver se eu não trado coisas ou pessoas para meu quarto, E quando ela toma meio litro de Gin com sabor de limão de tarde, ela sempre me pára ali no corredor. Me agarra pelo paletó ou pelo braço, e aperta aquele corpo nojento contra o meu pra me deixar encurralado num canto e falar comigo. Se você imaginasse o cheiro do corpo dela e do hálito... é impossível de imaginar... E, sabe? Numa parte qualquer não sei onde daquele cérebro minúsculo dela do tamanho de uma ervilha naquele órgão que nela se desenvolveu só o bastante para ela comer, beber, e emitir, você acredita que ela tem assim uma paródia imunda de desejo sexual? E eu, Peter, eu sou o objeto da sua volúpia suarenta!”

Peter: Bem, isso é revoltante... é horrível.

Jerry: Ah, mas eu achei um jeito de me livrar dela. Quando ela me fala, quando ela começa a apertar-se contra mim e a cacarejar sobre o quanrto etc. eu só digo: mas meu anjo, ontem não bastou para você? E antes de ontem também? Aí ela pára sem entender, aperta aqueles olhinhos miúdos, balança um pouco incertae depois... e é nesses momentos Peter que eu acredito que afinal estou sendo um benfeitor naquela casa atormentada... Um sorrisso beócio começa a formar-se no seu rosto inimaginável, e ele dá uma risadinha e geme de prazer pensando em ontem e antes de ontem, acreditando e revivendo o que nunca aconteceu. Depois ela faz um sinal para aquele montro de cachorro preto dela e volta para o quarto. E eu estou livre até me encontrar de novo com ela.”

Esta espécie de intróito semipornográfico e cômico é logo abafado pela continuação do longo monólogo do Jerry diante de Peter atônito. Um monólogo célebre, verboso, brilhante, que relata a impossibilidade de conquistara amizade do cachorro feroz e monstruoso da senhoria. A tentativa de acaricia-lo e de mata-lo fracassaram, vivendo ambos agora num estado de pétrea indiferença mútua.

“Eu gostava daquele cachorro agora que ele comera o veneno que eu lhe dera e sobrevivera. Eu tinha tentado amá-lo e tinha tentado matá-lo, mas ambas as vezes eu falhei. Eu tinha esperança então... Não sei porque mesmo eu esperava que o cachorro entendesse qualquer coisa, muito menos os meus desígnios... eu esperava que o cachorro entendesse... porque você sabe como é... é que se você não consegue engrenar com as pessoas... então você precisa começar de alguma parte... com animais, entende? Nós temos de saber lidar com alguma coisa. Se não puder ser com pessoas... com pessoas, então com alguma coisa. Com uma cama, comuma barata, com um espelho... om uma esquina... com muitas luzes, todas as cores se refletindo nas ruas manchadas de óleo... com um fiapo de fumaça, um fiapo... de fumaça... com baralhos pornográficos... com o amor, com o vômito, com o choro, com a raiva, com o dinheiro ganho com a prostituição do seu corpo... o que é um ato de amor e sou capaz de provar... com gritos de alegria porque estamos vivos, com Deus. Que tal isso, heim? Com Deus que é uma bicha de cor usando um kimono e arrancando sombrancelhas, com Deus que é uma mulher chorando com decisão por detrás de uma porta fechada... com Deus que me disseram virou as costas pra tudo tempos atrás... com... algum dia, talvez... com gente. Gente, com uma ideia e com um conceito e que lugar seria melhor, que lugar seria melhor nesse sucedâneo humilhante da cadeia, que lugar seria melhor para nos comunicarmos com uma ideia simples primária do que num corredor? Onde seria melhor então?

E agora vou te contar o que aconteceu no jardim zoológico. Mas primeiro devo te dizer porque eu fui ao jardim zoológico hoje. Fui lá pra saber se eu aprendia mais sobre a maneira das pessoas conviverem com os animais, e a maneira dos animais viverem juntos e com as pessoas também. Quem sabe não foi uma experiência muito boa, com todo mundo separado uns dos outros por aquelas barras, barras separando os animais e as pessoas.”

Mas a comunicação ambicionada não se estabelece. Incitando seu interlocutor a lutar pela posse do banco onde ambos estão sentados, Jerry o atiça a uma luta que logo se tornar real, feroz, revelando a hostilidade intrínseca do homem para com o homem. Jerry num ato suicida atira-se contra a faca que colocou nas mãos de Peter e morre, agradecendo-lhe pelo assassinato:

“Oh, Peter, eu tinha tanto medo que você fosse embora. Você não imagina que medo eu tinha que você fosse embora e me deixasse sozinho. E agora vou te contar o que aconteceu no Jardim Zoológico. Acho que foi isso... acho que quando eu estava no Jardim Zoológico eu decidi andar em direção ao norte da cidade... até encontrar você... ou outra pessoa... e eu decidi falar com você... eu lhe contaria coisas... e as coisas que eu ia lhe contar eram capazes de... bem, você está vendo? Nós estamos aqui. Estamos. Mas... não sei... será que eu planejei tudo isso antes? Não... eu não era capaz disso..., mas acho que sim. E agora eu te contei o que você queria saber não é, agora você sabe tudo que aconteceu no Jardim Zoológico. E você sabe agora o que vai ver na TV esta noite e o rosto que eu lhe disse... lembra-se? O meu rosto, o que você está vendo agora, Peter... Peter... muito obrigado. EU vim a ti e tu me confortaste. Meu caro Peter. Fuja... leve o livro antes... o livro... corra Peter... os periquitos estão fazendo o jantar... os gatos... estão botando a mesa... vá embora Peter!”.

A história incoerente do Jardim Zoológico fora relatada por meio das interjeições da agonia final de uma comunicação desvertrebada, imperfeita, unilateral. Entre o assassino e o assassinado estabeleceu-se um nexo ainda que violento melodramático forçado. Para romper as barras das prisões que nos cercam, diz Albee, é preciso romper com sangue os obstáculos que transformaram o homem num ser murado pelo conformismo, pela não participação pelo sacrifício ritual de tudo que for instintivo, espontâneo, sem sofisticação.

A mesma estereotipação, a mesma solidão imbuem a sua última peça, Quem tem medo de Virgínia Woolf, que originalmente tinha o título de O Exorcismo. Mais acentuadamente do que na história do Jardim Zoológico Albee atribui à linguagem vituperativa a função de uma catarse, como se a torrente de palavras pudesse purificar-se de tudo que é acessório e conduzir-nos à verdade. Nesse longo e dilacerante jogo da verdade que dura três anos ferozes. Exatamente como nas peças de Pinter o inferno assumia o aspecto de um pacato lar doce lar na Nova Inglaterra. Quando o professor de História Jorge e sua esposa Marta recebem o jovem casal de professores recém cehgados à pacata universidade provinciana da costa leste as invectivas que lançam um ao outro constituem uma duplicação do processo do monólogo utilizado em História da Jardim Zoológico. O jovem professor de Biologia é o mesmo conformista obtuso e quadrado e sua esposa é a duplicação da sua atitude obtusa. Os anfitriões, Jorge e Marta, são o elemento vital, explosivo, que tentam sufocar seu fracasso amoroso, sua falha como seres humanos através do Whisky, dos insultos, do sexo. Mas Albee já refina a sua técnica. Assim como Pinter nas suas últimas peças já não considerara necessário o assassinato físico de um personagem vítima e assim como Kafka transforma a morte sangrenta de Joseph K numa morte branda e irreal em O Castelo, também Albee conclui que há uma destruição de tecidos da alma humana, de moléculas espirituais que não se recompõem mais. Quando o marido na sua fúria destruidora aponta na versão original uma espingarda para a esposa que detesta e que significa o instrumento da sua derrota, a arma contém apenas um guarda-chuva colorido. A farsa coroa a tragédia que se consumou antes da cortina erguer-se. Assitíamos não ao divórcio definitivo de duas pessoas, mas ao lamento fúnebre pela morte que ocorrera antes. As alusões contundentes a respeito do filho imaginário selam a destruição do derradeiro elo que os unis antes daquela long alucinação noturna final. Nem a perspectiva histórica – o passado – nem a perspectiva futura – a do biólogo que prevê a mutação dos genes humanos extripando a injustiça e o egoísmo.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O gênio desigual de Eugene ONeill .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.