Resenha de Albert Camus, Herbert R. Lottman, Éditions du Seuil, Paris, 1978

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1979/03/03. Aguardando revisão.

Novos ricos da cultura, os norte-americanos tanto se comportam como ignaros milionários texanos do petróleo e compram telas “impressionistas” francesas pintadas por falsários cínicos como acumulam coleções deslumbrantes de arte como as riquíssimas famílias Rockfeler, Mellon, Guggenheim. No setor editorial, há a mesma bifurcação de uma cultura que se sedimenta desigualmente. Atualmente, o mercado livreiro dos Estados Unidos está abarrotado de três elementos díspares: uma preocupação supra real com fadas, Triângulos das Bermudas, Objetos Voadores não-identificados, feiticeiros do México de Castañeda seria a primeira vertente dessa tendência. A segunda é talvez a mais tradicional de toda a história da publicação nos EUA: os almanaques agora enobrecidos com o título presunçoso de Enciclopédias e que põem ao alcance de qualquer cidadão comum tudo que você queria saber sobre sexo, sobre como cuidar da sua saúde, como usar um torno, como ganhar um milhão de dólares, como seduzir mulheres e influenciar pessoas. É a parte do sucesso made in USA. Por último, prolifera uma verdadeira coqueluche nacional do vírus biographococos. Há biografias sobre todas as personalidades vivas ou mortas, estrangeiras ou nacionais já surgidas meteoricamente pela vida. Arthur Schlesinger explicita o Kennedysmo, mas uma biografia cruel da perversidade da star Joan Crawford como mãe-megera lidera a lista de livros mais vendidos pelos mexericos picantes que revela sobre a personalidade médico e monstro da atriz que na tela fez suspirar grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade como milhões de mortais ofuscados pela beleza e personalidade da artista.

Se escritores como Virginia Woolf, Proust, E. M. Forster, Joseph Conrad, Hemingway, D. H. Lawrence e outros tinham suas vidas esmiuçadas não por um, mas até por três ou quatro biógrafos simultaneamente – evidentemente com resultados às vezes conflitantes entre si – por que, pensou o jornalista Herbert R. Lottman, esfregando as ávidas mãos de contentamento, não me dedicarei a uma biografia sobre Albert Camus? O próprio peso físico da “pesquisa” levada a cabo anos a fio sobre o autor de La Peste já impressionaria: quase 30.000 linhas, quase 300.000 palavras de texto e a máquina dos best-sellers já tilintaria docemente na conta bancária de Mr. Lottman.

Infelizmente para o leitor e para o morto indefeso, é justamente o contrário que acontece: Albert Camus, par Herbert R. Lottman, Éditions du Seuil, Paris, 1978, enterra vivo qualquer interesse pelo escritor francês, soterrando-o com uma enxurrada de detalhes inúteis e banalidades do tipo das reportagens exigidas pelo jornalismo na acepção mais chula e menos grandiosa do termo: durante uma partida de um jogo semelhante à boccia italiana, um dia, foi Camus quem ganhou. A França foi invadida pelos exércitos hitleristas? Na Argélia, especifica o candidato a biógrafo, Camus tinha feito sozinho uma grandiose Bouillabaisse dando a impressão ridícula de que Camus ficara indiferente ao desfile das tropas alemãs sob o Arco do Triunfo em Paris, cozinhando uma peixada “com suas próprias mãos”. Os detalhes insignificantes e risíveis não se detêm aí minimamente: é enumerado item por item e quantidade por quantidade, todo o enxoval da noiva do primeiro casamento de Camus, sem esquecer que ele recebera da mãe doze pares de meias brancas. Sartre e Camus reúnem-se em um restaurante, não para discutir sobre política e filosofia, mas para comer cuscuz árabe, enquanto Simone de Beauvoir melancolicamente constata que as costeletas de carneiro que lhe couberam não passam de um osso envolto numa tênue camada de gordura...

O “biógrafo” dá minúcias cômicas de tão sem importância como: um carro que vinha buscar Camus chegou na hora. Ele expediu à família que ficou na África do Norte um caixote de víveres? O leitor fica sabendo, um por um, que víveres e que quantidades exatas deles foram mandadas. Não é vital para uma exegese metafísica da obra de Camus saber o nome do seu cão fox-terrier? Era Cigarette... E não é decisivo saber que um dos bistrots onde Camus jantava recebera três estrelas do Guia Michelin, de orientação culinária muito respeitada na França, uma espécie de Baedecker do paladar? Camus sobre cronicamente de tuberculose? A possibilidade de treinar ping-pong em um hotel suntuoso, com refeições excelentes, parece-lhe tornar a ideia de permanecer num sanatório bem mais aceitável. Há sempre uma obsessão gastronômica ridícula: em Nova York, Camus consome, no drugstore mais próximo, o típico breakfast americano: suco de laranja, dois ovos com bacon, torradas e café.

A incredulidade, a irritação, o ultraje apoderam-se do leitor. Será humanamente possível que o livro não decole nunca acima de tais banalidades? A importância capital de Camus ficará sepultada nesse labirinto de citações non sequitur e de uma estupidez bovina, a acumular pormenores em quantidade, diante da impossibilidade congênita do compilador de interpretar profunda e concisamente o pensamento, a intenção e a realização que animam a grandeza da criação camusiana?!

Do ponto de vista meramente estatístico, Herbert R. Lottman tem uma vantagem: as aspas. Cada vez que, a propósito ou fora de propósito (como na maioria das vezes), ele cita Camus ou outro pensador, o leitor submetido a essas imersões forçadas na banalidade majoritária dessas páginas, recobra fôlego e respira. Porque a verdade inegável é que se esta “biografia” é tragicômica de tão trapalhona e superficial, no entanto, os fatos se inserem por entre as frestas de tanta ingenuidade estúpida disfarçada de meticulosidade de “investigação” e o leitor, exausto, consegue vislumbrar lampejos de luz depois de tanta treva. Em meio ao depoimento adiposamente excessivo dado por dezenas de amigos e conhecidos de Camus que contribuíram com suas opiniões, datas e esclarecimentos para a confecção dessa biografia insípida e grotesca, sempre se filtra um raio ou outro de inteligência em meio a tanta busca pomposa de “objetividade anglo-saxônica”, slogan publicitário com o qual as editoras (francesa e americana) querem ludibriar o leitor, fazendo-o crer que está comprando uma obra séria e quem sabe até “definitiva” sobre Camus...

O que resta então desta comédia de erros de dimensões imensas (688 páginas de formato duplo, letra miúda)? Nada que estudos infinitamente mais sucintos e mais profundos sobre Camus não tenham já deixado claro, servindo-se, ao contrário deste livro, de um estilo e de uma exegese dignos dessas designações (Robert de Luppé, Wyndham Lewis, Morvam Lebesque, Roger Quilliot, Albert Maquet e muitos outros).

É de conhecimento geral o universo particular de Camus para quem conheça, ainda que superficialmente, seus livros: a insistência na superioridade da civilização mediterrânea, que desde a Grécia antiga celebrava o comedimento, a virtude do equilíbrio equidistante de qualquer extremismo, a cálida tolerância humana que o sol – da sua Argélia natal, quando era ainda colônia francesa – traz para aproximar os homens em um clima de fraternidade e não de conflitos dilacerantes como na Europa tecnicizada, desumanizada e gélida. A continuação que ele, Camus, representa da linhagem de escritores como Melville, Pavese, Kafka e mais longinquamente do poeta-filósofo Lucrécio que constatam o absurdo da condição humana com a nota de marcante diferença: para ele não se devia prantear a brevidade da vida, mera preparação para a morte, nem se deveria buscar uma além-vida mística, radicada na Fé, em Deus, no Absoluto. O Absoluto era a própria existência humana, o Absoluto, em termos desprovidos de qualquer pregação cristã, era o Próximo.

Extraordinário de vibração humana, excepcional pela sua ínclita honestidade, Camus foi cronologicamente o primeiro também a criar uma linhagem: a dos escritores modernos que denunciam inapelavelmente os totalitarismos políticos, desde Malraux e Silone a García Lorca e Solzhenitsyn. De fato, a grandeza da sua efêmera, mas indelével passagem pela esfera da reflexão e da comoção humanas em sua expressão francesa deste século enraíza-se nitidamente no seu aut-aut ético: o que para o existencialista místico dinamarquês Kierkegaard representa o ou se crê em Deus, ainda que a Fé se estribe no absurdo, ou nada tem significado. O que ecoa a dilacerante indagação de Dostoiévski: se há Deus, por que existe o Mal? Camus envereda por um desvio da questão colocada nesses termos teológicos. Pressupõe a inexistência nietzscheana de Deus: “Deus está morto”, proclamou Zaratustra e se agarra então com maior fervor ao ser humano desamparado entre o nascimento e morte, ambos ilógicos, e só justificado pela beleza sem transcendência religiosa de ser, de agir fraternalmente em meio aos demais seres humanos.

L’Homme Révolté (e, em menor escala, Le Mythe de Sisyphe) exprime, de forma eloquente, inesquecível, todo o Credo humanístico de Camus que o torna a cada dia mais lúcido e mais relevante para a nossa época. Haverá autor mais contemporâneo da era dos campos de concentração soviéticos, o tétrico Gulag de Solzhenitsyn, do Muro de Berlim, do paredón de execuções da Cuba castrista, da terra arrasada das antigas democracias sul-americanas como o Uruguai e o Chile, transformados em repetições de Dachau e Auschwitz e do exílio do homem da solidariedade do seu próximo no navio que, carregado de vietnamitas, erra em alto mar, saqueado por piratas e com sua “carga” humana recusada pela quase totalidade das nações do mundo?

Como esta biografia claudicante deixa entrever, em meio a essa pleonástica acumulação de obviedades que o leitor tem que varrer, linha por linha, para divisar o biografado, o fulcro central de todo o pensamento de Camus, aliado à beleza solene e severa do seu estilo artístico clássico, sóbrio, sereno, é a recusa do Terror como argumento para justificar a política de Direita ou de Esquerda. Se nada mais restar da produção teatral e dos romances de Camus – Le Malentendu, La Chute, La Peste, L’Etranger – permanecerá, porém, intacta, sua soberana meditação filosófica, ética, política, sobre o “Homem Revoltado” apoiada na negação de que os fins justificam os meios. Em gérmen, essa revolta de um Prometeu humano contra o absurdo já pronunciava a precariedade, hoje acelerada em seu ritmo, em que já vivemos neste início de 1979. Ao fundar, com a novelista norte-americana Mary McCarthy e outros intelectuais o Grupo América-Europa, ele já delineava, um a um, todos os males que persistem e se agravam desde então:

“Somos um grupo de homens que, ligados e amigos da América, da Itália, da África e de outros países, decidimos unir nossos esforços e nossas reflexões para preservar algumas das razões que dão sentido às nossas vidas.

Essas razões estão ameaçadas hoje em dia por muitos ídolos monstruosos, mas sobretudo pelas técnicas totalitárias.

Essas razões estão ameaçadas sobretudo pela ideologia stalinista.

Essas razões estão ameaçadas também, em grau menor, é verdade, pela tecnolatria norte-americana. Esta não é totalitária, pois pressupõe a neutralidade do indivíduo. Mas, a seu modo, ela também é totalizante, pois soube, através dos filmes, da imprensa e da rádio, tornar-se indispensável psicologicamente e tornar-se amada...”

Esse pequeno grupo de intelectuais de esquerda anticomunista não acreditava na mera substituição dos patrões capitalistas, donos das fábricas, pelos chefes incontestes e incontestáveis do Partido Comunista, chefão todo-poderoso de todos os pensamentos e ações, o Big Brother orwelliano. E discernia perfeitamente entre os intelectuais norte-americanos que não aceitavam o american way of life e seu imperialismo econômico e cultural sobre os demais países como tampouco confundia os dissidentes soviéticos com o terror stalinista que erguia o sinistro campo de aniquilamento, o inferno dantesco do Gulag que só em 1956 Kruchev deixaria aparecer, em escala ínfima, com a publicação de Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch de Solzhenitsyn e a denúncia dos crimes de Stalin revelados no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética.

O “biógrafo” natimorto, Herbert R. Lottman, liquida com 12 páginas e meia a Ruptura entre Sartre e Camus, como se tratasse, hipoteticamente, da separação de Jacqueline ex-Kennedy do milionário grego Onassis, em tom de sensacionalismo panfletário, sem aprofundar-se minimamente no divisor de águas simbólico para todo o século XX que essa escolha temerária de Camus, contra a maquinaria poderosa do Partido Comunista Francês, dócil ao comando da “Central” de Moscou, acarretaria contra ele. Camus recebeu, é verdade, o apoio de uma parte considerável da Esquerda que repudiava o totalitarismo, mas o conluio entre os robôs do Partido e a apressada rotulagem de “valoroso combatente” pela imprensa de Direita agiu como um rolo compressor. Ao receber o Prêmio Nobel, ainda extremamente jovem, Camus foi saudado com ironia como um autor “cuja obra já tinha perecido” e a sordidez moral de Sartre, que invejava o sucesso de Camus, não deixou de funcionar: pois, se Sartre jamais condenara os campos de morte da URSS nem participara da Resistência e só “liberara” um teatro, quando da chamada “liberação” de Paris, que respaldo moral ele teria para se opor à corajosa afirmação de Camus de que “se por acaso a verdade for da Direita eu o direi”? Sartre era, como Camus o via lucidamente, um burguês que vivia de rendas, que se recusava a condenar os horrores dos republicanos espanhóis entregues aos soviéticos e transportados incontinenti, por ordem do Paizinho Stalin para os campos gélidos da Sibéria. Caridosamente, Camus não atacou a fragilidade do “existencialismo” pseudofilosófico de Sartre: mais cáustico foi o filósofo alemão Heidegger que respondeu à solicitação de um colóquio com Sartre: “Não recebo repórteres”.

Nunca a história da França abrigara conflitos tão trágicos no decurso de uma única vida: argelino de nascimento, Camus tivera que assistir aos dolorosos eviceramentos da Argélia do jugo francês; participara do movimento da Resistência contra o invasor nazista alemão; dilacerara-se com o papel colonizador e tirano da França na Indochina, prelúdio da derrota fragorosa de Dien-Bien-Phu e da débâcle ontem americana, hoje chinesa no Vietnã. Camus, que almejava a reumanização do homem, verificava a coisificação do homem pelo aparato repressivo do Estado, que suprimia todas as liberdades, inclusive a do artista. Para ele, a arte baseava-se na realidade e, portanto, na revolta contra essa realidade. O artista, como já o reconhecera há milênios Platão, ao expulsar de sua República ideal todos os artistas, é sempre o inimigo de toda as ideologias que não sejam democráticas: manipulado pelo Estado ou pelos meios de comunicação de massa, o artista pode ser fácil e rapidamente transformado na polpa amorfa do inimigo do Povo, como na peça de Ibsen, mesmo quando, na realidade, ele seja o único legítimo amigo do povo, ao ornao-lo contra a poluição física, que envenenará milhares de vidas e a poluição mental imposta pela Censura, de Armando Falcão ou de Jdanov, tanto faz.

Quem se aventurar por esse mais de meio milhar de páginas e palavras que esvoaçam em torno de Camus como se ele fosse uma carniça rendosa no book market concordará que há males que vêm para bem. Quem conhece os pontos inegavelmente altos da ação e da reflexão íntegras de Camus correrá de volta a seus livros fundamentais, tanta será a saudade da inteligência depois de tão longo deserto de estupidez. Quem não conhecer Camus, pelo menos através das citações copiosas que esta biografia elefantina inclui, poderá interessar-se por este autor que, provavelmente mais do que qualquer outro, exceto Malraux, é extremamente pertinente para o mundo de hoje e especificamente para o Brasil de hoje.

Lottman não obedeceu a um sábio preceito anotado cuidadosamente por Camus em seus Carnets pessoais:

“A verdadeira obra de arte é aquela que diz menos”.

Se o infortunado autor desta paquidérmica biografia tivesse seguido esse profético conselho, seu volume não seria essa irritação seguida de frustração que se arrasta por quase 700 páginas longuíssimas, sem armistícios quase. Os leitores podem ficar advertidos desde já: o mesmo Herbert R. Lottman está preparando, entre um trabalho jornalístico e outro, um livro sobre o urbanismo europeu (afinal, Lottman é versátil...) intitulado, profeticamente, How cities are saved (Como se salvam as cidades). Pela amostra de como ele quase destruiu a cidadela de Camus, pode-se prever que catástrofe cairá agora na área dos arquitetos, planejadores urbanos e habitantes de metrópoles.

Por ora, como uma funda nostalgia, ficam as palavras estoicas, maduras, másculas de Camus ao reconhecer, já em 1935, a ilusão comunista do mero progresso material como forma de solução de todos os problemas humanos, da centralização de ordens colocada totalitariamente por Lenin em Moscou, a falácia de que o ser humano pode prescindir de valores espirituais em prol do Estado abstrato. Como jamais perderão seu significado as palavras ao hesitar entre aderir ao Partido Comunista, enquanto as “democracias socialistas” de todos os matizes escamotearem a verdade e a liberdade, a democracia e justiça:

“Justamente na experiência (leal) que empreenderei (ao entrar para o Partido Comunistas, na esperança de a doutrina comunista suscitar novas preocupações espirituais), eu me recusarei, sempre, a colocar entre a vida e um ser humano um volume do Capital”.

A atualidade das meditações de Camus sobre a revolta contra a tirania e a impossibilidade de se justificar um crime através de uma ideologia, por mis justa e amante da liberdade e dos mais sublimes ideais da humanidade que esta pretenda defender, constitui, desde a primeira página, o ponto mais surpreendente de seu ensaio profundo e abrangente, L’Homme Révolté.

Seria difícil acreditar que as reflexões e acusações de cunho visceralmente ético do autor nascido na Argélia foram publicadas em 1951. A única possibilidade que o leitor tem de comprovar sua data é confrontando os dados então à disposição do escritor e a avalancha de dados ainda mais apavorantes que surgiriam cinco anos depois, com a revelação, ainda que parcial, dos crimes em massa perpetrados por Stalin, durante o XX° Congresso do Partido Comunista da União Soviética, quando Kruchev temerariamente levantou o véu sobre o terror stalinista.

Hoje, depois que os khmer vermelhos do Camboja do comunismo da idade da pedra massacraram um terço da população civil do país, em que milhões vieram se somar aos tétricos arquipélagos Gulag da Rússia, à chacina “científica” de Hiroshima, aos campos de concentração e tortura de vários países latino-americanos, ao esmagamento do “socialismo de rosto humano” de Dubcek, da rebelião húngara de 1956 – agora suas palavras adquirem a gravidade de um brado de consciência mundial contra o napalm usado no Vietnã pelos norte-americanos e contra os eritreus separatistas pelos cubanos comandados pelos russos na Etiópia em guerra fratricida, nas execuções sumárias que vão do Irã ao Irak, ao Iêmen do Sul, num vasto paredón do arbítrio erigido em jihad, guerra santa contra os que ousam dissentir.

Seu ponto de partida é, como se poderia dizer, jurídico-filosófico. E não há texto mais atual com referência às Brigadas Vermelhas italianas e aos grupos terroristas alemães, bascos, irlandeses do Norte ou palestinos e japoneses.

“Há crimes passionais e crimes lógicos. O Código Penal os distingue, muito comodamente, por meio da premeditação. Vivemos a época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais ingênuos desarmados que invocavam como escusa o amor. Ao contrário, são adultos e seu álibi é irrecusável: é a filosofia que serve para tudo – mesmo para transformar os assassinos em juízes”.

Heathcliff, em O Morro dos Ventos Uivantes, mataria a terra toda para possuir Cathie, mas não lhe ocorreria a ideia de afirmar que tal assassínio fosse racional ou justificado por um sistema. Ele o cometeria, sem dúvida, e aqui está o limite de sua crença. Tal atitude pressupõe a força do amor e a firmeza do caráter. Sendo rara a força do amor, o assassínio continua sendo uma exceção e mantém seu aspecto de violência, de arrombamento ilícito. Mas, a partir do momento em que, na ausência de uma firmeza de disposição, corre-se à busca de uma doutrina que justifique os atos, a partir do momento em que o crime adquire toda as formas do silogismo. De solitário que era tal como um grito, torna-se universal como a ciência. Julgado ontem, ele é que dita as leis.

Aqui não se trata de ornaogas-nos com o fato. A intenção deste ensaio é a de, mais uma vez, aceitarmos a realidade do momento, que é o do crime lógico, e de examinarmos precisamente as suas justificações: será um esforço para compreender os tempos em que vivemos. Pode-se aventar que uma época que, durante cinquenta anos, desenraiza, escraviza ou mata setenta milhões de ser humanos deve, em primeiro lugar, e unicamente, ser julgada. Será necessário compreender ainda a sua culpabilidade. Durante os tempos ingênuos, simplistas, do passado, quando o tirano arrasava cidades inteiras para sua maior glória, quando o escravo algemado à biga do vencedor desfilava nas cidades em meio aos festejos, quando o inimigo era jogado às feras diante do povo reunido – diante de crimes tão cândidos, a consciência não podia hesitar e as condenação era clara. No entanto, com o advento dos campos de escravos (campos de concentração) “justificados” pelo amor do ser humano ou pelo sabor de se atingir uma supra humanidade, desmantelaram, de certa forma, o próprio julgamento moral. Quando o crime se orna com os despojos arrancados à inocência, por uma curiosa anomalia característica de nossa era, é a inocência que é intimada a apresentar suas justificações. O objetivo deste ensaio seria o de aceitar e examinar este estranho desafio.

Trata-se de saber se a inocência, a partir do momento em que começa a agir, não pode parar de matar. Podemos agir unicamente no momento que é o nosso, cercados pelos homens que nos circundam. Não chegaremos à conclusão alguma enquanto não soubermos se temos o direito de matar o próximo que está aqui diante de nós ou de consentir que ele seja executado. Já que toda ação hoje em dia leva ao crime, direto ou indireto, não podemos agir sem saber, antes, se é por que devemos infligir a morte a outrem.

O importante, portanto, não á ainda o de voltarmos à raiz inicial dos acontecimentos, mas, o mundo sendo o que é, o de saber como nos comportar dentro dele. Na época da negação, poderia revelar-se útil interrogar-nos a respeito do problema do suicídio. Na época das ideologias, é preciso acertar contas com o crime. Se o crime tem razões próprias, nossa época e nós mesmos fazemos parte integrante das suas consequências. Se o crime for desprovido de razões, mergulhamos na loucura e não há outra saída senão a de reencontrarmos uma consequência ou afastarmo-nos do problema por meio de desvios. Cabe a nós, contudo, responder claramente à pergunta que nos é formulada, em meio ao sangue e aos clamores do século. Porque nós fazemos parte da pergunta em si. Há trinta anos, antes de se decidir a matar, havia-se negado muito, a ponto de se negar a si mesmo através do suicídio. Deus trapaceia, todos fazem o mesmo, até eu, portanto eu morro: o suicídio era a questão. A ideologia, hoje em dia, não nega mais do que os outros, únicos trapaceadores. E é aí que se mata. Ao alvorecer de cada dia, assassinos vestidos grotescamente insinuam-se numa cela: o assassínio passa a ser a questão.

Os dois modos de raciocinar não se eliminam mutuamente. Ao contrário, eles nos capturam e de forma tão estreita que não podemos mais escolher os nossos problemas. Eles é que nos escolhem, um a um. Aceitemos ser escolhidos. Este ensaio propõe-se a levar a cabo, diante do crime e da revolta, uma reflexão iniciada em torno do suicídio e da noção do absurdo.”

O niilismo de Nietzsche, principalmente, será o fio condutor das elocubrações éticas de Camus sobre a “legalização” e “justificação” ideológica, doutrinária, dogmática, do assassínio. “O sentimento do absurdo, quando dele se pretende antes de mais nada obter uma regra de ação, torna o crime pelo menos indiferente e, por conseguinte, possível. Se não cremos em nada, se nada tem sentido e se não somos capazes de afirmar valor algum, então tudo é possível e nada tem importância”. A pergunta que constitui o núcleo central de toda a moral humana lançada por Dostoiévski – se Deus não existe, tudo é possível – é retomada por esse pensador que não crê em Deus, conforme proclamara o Zaratustra de Nietzsche: “Deus está morto”, mas que não aceita que não subsista um laço fraternal entre os seres humanos e se recusa corajosa e coerentemente a admitir que os fins justificam os meios, o que implicaria a recusa de qualquer premissa ética. Recusando o Cristianismo, Camus não decreta a abolição dos postulados morais da consciência e, portanto, das regras de comportamento ético de um ser humano para com o seu próximo. A revolta humana compõe-se de elementos díspares, mas não irreconciliáveis: ao contrário, são complementares. Quem se rebela contra uma situação injusta sacrifica até a própria vida pela causa de um Bem que ele crê estar acima da sua mortalidade em si insignificante: “Na revolta, o homem se ultrapassa a si mesmo e atinge o outro, o seu semelhante e, sob esse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica”.

Camus recusava sempre, e peremptoriamente, o rótulo de existencialista, termo demasiado vasto e confuso, que teria como linha fundamental uma análise desprovida de premissas religiosas da condição humana e a formulação de um ideal de solidariedade humana entre seres perecíveis e desamparados de qualquer paraíso depois da morte. No entanto, ecoa em toda a sua obra a sombra de Kierkegaard, o filósofo dinamarquês, que reconduzia a filosofia ao terreno do sagrado com o seu aut aut: ou cremos em Deus e agimos de acordo com regras de amor ao próximo ditadas pelas grandes religiões, neste caso ocidental, o cristianismo, ou vivemos uma existência desprovida de um conceito metafísico, tão imediata, portanto, quanto a de um animal irracional. Camus reconhece que as estruturas religiosas como a dos incas, dos astecas, dos maias e as castas que incluem até os párias do Hinduísmo, não produzem rebeldes porque a sacralização implícita de uma sociedade enraizadamente teocrática abole por si só a noção ocidental de revolta e de absurdo. Profeticamente, porém, ele vislumbrara que a doutrina do crime legalizado pelo imprimatur do Nazismo ou do Partido Comunista Único logo se estenderia por todas as nações contagiadas por dogmas fanáticos políticos originados da teoria da desigualdade intrínseca dos homens divididos pelo Conde de Gobineau e por Hitler, em raças “superiores” e “inferiores”, ou saídos da retorta mecanicista do marxismo-leninismo stalinista – ambas desembocando na tortura, na morte, em Dachau, Auschwitz ou no Gulag. Ele coloca com nitidez a desestabilização da sociedade ocidental e hoje planetária em que vivemos: “Vivemos uma História dessacralizada. O homem, por certo, não se resume apenas à insurreição. Mas a História atual, pelas suas contestações, nos força a dizer que a revolta é uma das dimensões essenciais do homem. Ela constituía a nossa realidade histórica. Se não quisermos fugir da realidade, é indispensável que encontremos nela mesma os nossos valores. Pode-se, longe do sagrado e seus valores absolutos, encontrar uma regra de conduta? Essa é a pergunta formulada pela”revolta”.

Ora, o vácuo da religião é preenchido pela filosofia do Estado de Hegel; já que o mal, os erros e sofrimento não podiam mais servir de argumento contra uma Divindade inumana e talvez inexistente, é o próprio homem, é a coletividade humana que passa a ser divinizada. O nacional-socialismo alemão é apenas uma etapa transitória do niilismo. Nietszche e Marx substituíram as recompensas do céu, após a morte, pelas recompensas temporais do “mais tarde”. “Dessa forma, Nietzsche traía os gregos e o ensinamento de Jesus que, a ser ver, substituíam o Além pelo Imediatamente. Marx, exatamente como Nietzsche, pensava em termos estratégicos e, como ele, também odiava a virtude formal. As revoltas de ambos terminam igualmente por aderir a um determinado aspecto da realidade e vão fundir-se no marxismo-leninismo e encarnar-se nessa casta a que já se referia Nietzsche, que deveria”substituir o padre, o educador e o médico”. A diferença essencial é que Nietzsche, à espera do super-homem, propunha que se dissesse “sim” ao que é e Marx a aquilo que se transforma. Para Marx, a natureza é elemento que deve ser subjugado para se obedecer a História, para Nietzsche a natureza é que deve ser obedecida para que possamos subjugar a História. É a diferença entre o cristão e o grego.”

Além de já delinear claramente o impacto do pensamento ocidental e absolutista de Marx que redunda na destruição da ecologia e no revide da Natureza às agressões do homem efetivadas pelo desmatamento, pela poluição, pela destruição dos oceanos, Camus recorda que já Nietzsche previra o que sucederia com a teoria marxista: “O socialismo moderno tende a criar uma forma de jesuitismo secular, leigo, a fazer de todos os seres humanos instrumentos” e mais adiante: “O que se quer é o bem-estar... Em seguida marchamos rumo à escravidão espiritual de dimensões nunca vistas anes... O cesarismo intelectual paira por cima de toda atividade dos negociantes e dos filósofos... Tendo escapado à prisão de Deus, a primeira preocupação (do marxismo ateu) será a de construir a prisão, da História e da Razão, dando os toques finais, dessa forma, à camuflagem e à consagração do niilismo que Nietzsche pretendia derrotar”.

O quinhão de alucinação contido, em doses diversas, nas filosofias erigidas por Hegel e por Nietzsche, uma vez desvirtuado, conduziu, inelutavelmente, aos campos de concentração hitleristas e soviéticos. Camus vê em todas as revoluções modernas um reforço da nação, já quase sacral, do Estado. De fato, a Revolução Francesa de 1789 traz como resultado o “imperador” Napoleão Bonaparte, 1848 deságua na tirania de Napoleão III, a Revolução Bolchevista de 1917 tem como corolário Stalin, as fermentações sociais italianas da década de 20 resultam na ascensão de Mussolini ao poder, a derrocada da frági estrutura democrática da República de Weimar, na Alemanha, à “consagração” popular de Hitler: “A onipotência crescente do Estado sancionou todas as vezes essa ambição (da construção da Cidade Humana e da liberdade genuína”. Destruída a Cidade de Deus cristã, deixaram lugar ao Estado racional ou irracional, mas nos dois casos terroristas da Alemanha nazista e da Rússia marxista. O fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão diferenciaram-se de fiéis à todas as revoluções anteriores porque, sua herança niilista, elas optaram pelo extremo de deificar o irracional, em vez de divinizar a Razão. Enquanto Mussolini citava Hegel e Hitler, Nietzsche, o fascismo italiano anunciava o advento da “Santa Religião da Anarquia”. Era a instauração da moral do gangster que se demonstrava com o apelo de Mussolini “às forças elementares do indivíduo” e pregava a exaltação “das potências obscuras do sangue e do instinto, a justificação biológica daquilo que o instinto de dominação pode produzir de pior”. Quanto a Hitler, sua “religião” confessa era uma justaposição, sem hesitações, do Deus-Providência e do céu dos germanos primitivos, o Walhalla, onde os guerreiros combateriam eternamente, eternamente feridos e eternamente cicatrizados para renovas as lutas sangrentas. Crendo-se “inspirado” por tais deuses, Hitler não hesitou em sacrificar o povo alemão que o tinha “traído”. Camus considera que um dos raríssimos homens de cultura que o nazismo produziu e que poderia dar um verniz de meditação filosófica ao movimento nacional-socialista.

Ernst Jünger formulou claramente o niilismo subjacente ao nazismo ao escrever: “A melhor resposta à traição da vida pelo espírito é a traição do espírito pelo próprio espírito, e um dos gozos maiores e mais cruéis de nossa época é o de se participar desse trabalho de destruição”... E, como o Walhalla exigia combates e inimigos perpétuos, sucederam-se, na denúncia dos subhomens, os judeus, os franco-maçons, os plutocratas, os anglo-saxônicos, o eslavo bestial... Passa-se à idolatria do Condutor dos Povos, seja ele o Führer, o Duce ou o onisciente e onipotente Stalin ou o infalível papa chinês, Mao Tsé-Tung e seu Evangelho, o Catecismo do Livrinho Vermelho.

Na denúncia de todos os totalitarismos, de Direita ou de Esquerda, Camus vê lucidamente a herança fatal que pesou sobre as falsas profecias de Marx e seu mecanicismo econômico: “Sua doutrina (de Marx), cujo realismo ele fazia questão de ressaltar, era realista, realmente, na época da religião da Ciência, da teoria da evolução de Darwin, da máquina a vapor e da indústria têxtil. Cem anos mais tarde (isto é, em 1950), a ciência deparou-se com a teoria da relatividade, com a incerteza, o acaso. A economia tem que levar em conta a eletricidade, a siderurgia, a produção atômica (sem falar dos computadores e dos mísseis e satélites extraterrestres, que na época de Camus, não existiam simplesmente, mas cuja importância Kruchev, por exemplo, não subestimou). O fracasso do marxismo puro em suas tentativas de integrar essas descobertas sucessivas é também o fracasso do otimismo burguês da sua época. Tal impotência torna ridícula a pretensão dos marxistas de mandar cristalizadas, numa paralisia total, verdades que o eram a cem anos, com a veleidade ainda de se querer que elas hoje em dia mantenham sua base de verdade científica. O messianismo do século XXI, seja ele revolucionário ou burguês, não resistiu ao crescimento sucessivo dessa mesma ciência e dessa mesma História, que em graus diferentes Marx divinizara.”

A Revolução assumiu, à Direita ou à Esquerda em seus extremos, a revolta contra as suas próprias origens de justiça, liberdade e solidariedade humana. Como Camus cita o Marquês de Sade: “A solidão é o poder”, o poder do Kremlin ou da Madrid franquista, tanto do khmer vermelho quanto da ausência de oposições em qualquer regime não democrático: a dissidência e a morte.

A terra desumanizou-se, a História tornou-se nosso Inferno cotidiano reproduzido na tela da televisão ou nas manchetes dos jornais, nas guerras, nos sequestros, nos atos de terrorismo. O apelo final de Camus é pelo abandono do homem de qualquer sonho de apoderar-se da natureza, da técnica, dos preceitos morais – em uma palavra: o homem deve renunciar a ser Deus, o mesmo Deus que ele relegou ao montão de cadáveres sem Deus acumulados tanto faz em Auschwitz quanto na Sibéria. A sua palavra final, mesmo descrente, como Lucrécio, de um sentido divino, metafísico, da trajetória humana pela Terra, um sentido não perceptível pelas limitações humanas, é de esperança, lucidez e destemor. A arte, a consciência, a ética representam o humano imperecível enquanto houver a espécie humana: se o palco, restrito, do ser humano é esta Terra finita e sua ação se limita a um período efêmero de tempo, seu amor é devido inteiro à vida e aos seus semelhantes, os demais seres humanos. E a vocação humana incoercível é rumo à liberdade, sempre, incansavelmente.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Resenha de Albert Camus, Herbert R. Lottman, Éditions du Seuil, Paris, 1978 .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.