Hilda Hilst, cósmica e atemporal. Em busca de Deus
Um dos muitos pseudônimos de Fernando Pessoa se enlaça aderentemente à criação ímpar de Hilda Hilst no panorama da contemporânea literatura mundial: Alexander Search, search ou quest: a Busca Incessante, sede que devora a totalidade de seus personagens, a Busca de quê? De um Deus compreensível para a paliçada de conceitos humanos que cerca Koyo, em seus diálogos com Deus, o inescrutável, talvez inexistente Haydun, na ficção intitulada “Floema”. Da transcendência da vida chã, utilitária, materialista, como o executivo engasgado com a riqueza e seus rituais, o Tadeu morto-vivo sob pedras de ágata a buscar uma dimensão poética para a existência que nega aceitar como banal transitorieadade biológica em Tu Não Te Moves de Ti. A lúbrica, lírica Maria Matamoros embriagada de Eros como príapo e com o amor arrebatador e que só encontra no punhal que crava na própria vagina a parede final de seu beco sem saída nem volta. Amos Kéres, o professor de matemática que ousa ser diferente dos demais e perde a memória nas aulas, preso do êxtase de um satori, uma iluminação espiritual cegante e transfere seus livros para um bordel, meditando sobre a obsessão de seu amigo que vive com uma porca, Kadek: a curva de Moebius, que não tem avesso nem direito. Ou finalmente a Obscena Senhora D., a viúva Hillé que se muda para o vão da escada e recorta periodicamente peixes de papel que coloca em um aquário, a execrada pelo povoado por sua derrelição: desamparo, abandono, mas insaciável em sua digestão de Deus:
“Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito”.
Este desafio de indivíduos tocados pela loucura insanável de compreender é uma ciranda faiscante e sinistra à beira da morte, todos acorrentados efemeramente na roda do Tempo, essa roldana hindu de ciclos de queda e ascese, de asco, abominação, banalidade e luminosidade ofuscante. Há, porém, não uma doce reconciliação final de reencontrar, cada um de seus tocados pela insanidade de querer compreender, a via mística de apaziguamento, de volta à Origem. Não: “in mezzo di una selva oscura” se agitam todos, aprisionados em um inferno que mais do que desesperança tem como clima característico a melancolia.
As classificações teológicas do misticismo, como as enumeradas por Evelyn Underhill, por exemplo, são inúteis e sem aplicação no caso da extraordinária escritora e poeta paulista. Todas as modalidades de estremecimento fundamente religioso – antes que os prelados, rabinos e aiatolás codificassem as doutrinas numa camisa-de-força de fanatismo – se mesclam em sua obra admirável: Deus é imanente e pode ser “uma noite escura cheia de estrelas como um flamante sorvete de cereja”, comforme ela me declarou pessoalmente, da mesma maneira que o autor norte-americano Salinger aventara a hipótese que Jesus Cristo fosse aquela mulher obesa ao nosso lado engolindo sofregamente um sundae de marshmellow. Ou Deus é incognoscível, à maneira de K, o banido do Castelo no torturante labirinto de Kafka. Ou, ainda, Deus é feito meticulosamente à feição do ser humano: colérico, vingativo, vaidoso de suas prerrogativas como nas páginas flamejantes do Velho Testamento judaico, pesando as ações de Jó e desnudando-o de toda riqueza até reduzi-lo ao pó que lambe suas sandálias; ou exigindo de um pai o absurdo de uma demonstração de fé cega: a decapitação de seu filho amado, Isaac, num ritual bárbaro e cruel. Por isso frequentemente Deus se atinge, paradoxalmente, pela blasfêmia: é um porco, é um surdo-mudo, um louco sádico como o que Shakespeare colocou na boca sacrílega de um de seus personagens na sanguinária tragédia de assassinato, bruxas e culpa que é Macbeth. Aqui é um Deus-menino despido que se distrai como crianças cruéis brincando com moscas capturadas a quem arrancam as asas, os olhos, em “travessuras” que divertem essa “turma” e deuses monstruosos.
Plural, riquíssima, no entanto, a escrita de Hilda Hilst não se restringe a essa Busca de um estado paradisíaco em que tínhamos noção do paraíso porque não estávamos separados dele. Um livro inteiro talvez pudesse abarcar todos ou quase todos os aspectos mais importantes do seu cosmos personalíssimo e irrepetível. Esbocemos, contudo, pelo menos a insistência na onipresença da Morte. O teorema, sempre claramente demonstrado, das duas castas de linguagem, pensamento e comportamento: o dos “diferentes”, incompreendidos pelos demais, e a manada dos utilitaristas, dos banais, dos que só falam através de lugares-comuns. A busca da Salvação da alma pelo poder ambivalente da palavra, o fluxo ininterrupto de palavras incantatórias evocadas para satisfazer um Senhor insone e ameaçador. Hilda Hilst desfia, acumula, amontoa as palavras mais rutilantes da língua portuguesa, ou as inventa, para depô-las como oferenda no altar Daquele que se Esconde Sempre.
Naturalmente, há dificuldades que a princípio desconcertam o leitor. Ela se refere a Plotino, o magnífico filósofo da escola neoplatônica do século III e seus meandros inefáveis sobre o destino da alma e seus desencontros com a Divindade. Usa frequentemente fórmulas da alta matemática de um Bertrand Russell ou de suas conversas pessoais com físicos brasileiros, seus amigos como Mário Schenberg ou César Lattes. Aos poucos, porém, os leitores se sentem enredados por uma possibilidade que ultrapassa de muito o repto de conhecimento erudito e especializado: a possibilidade de construir junto com a autora as múltiplas significações e os quase infinitos desvendamentos da sua criação. Poucas obras são tão corajosas e coerentemente “uma obra aberta”, que convida quem lê a participar da armação do todo. Nada é imposto. Tudo é móvel. Cambiante. Labiríntico.
Sem base seria qualquer afirmação de que se trata de uma aristocrata enclausurada em sua torre de cristal e marfim, alienada do mundo e presa a berloques de estética. No sentido mais rasteiro do termo, a prosa de Hilda Hilst é também intensamente política, reivindicatória no sentido menos panfletáro, mas mais desesperançado do termo. A roda da História da humanidade, como para a grande escritora inglesa de hoje, Doris Lessing, para ela igualmente gira sem cessar dentro de um trajeto fixo e imutável de horror. A roda tem cinco ou seis palavras de ordem intercambiável: democracia, liberdade, justiça, igualdade, fraternidade: todos pretextos para a derrubada de um terror para em seu lugar ser erguido o inferno do fanatismo: Hitler, Khomeini, a Inquisição, Stalin e a roda gira novamente Hitler, Khomeini, a Inquisição, Stalin…
“… Mover-se. Por que não? Agora em férias, no segundo semestre falaria das revoluções, de muitas, vermelhas verdes negras amarelas, enfoques adequados nem veementes nem solenes enfoques despidos de adorno, o tom de voz nem oleoso nem vivaz, um sobretom doce-pardacento, o lenço nas lentes, tirando e pondo os óculos, já se via no segundo semestre tirando pondo vivo comprido significante repetindo: pois é sempre ISSO meus queridos, cinco ou seis pensamenteando, folhetos, folhetins afrescos, sussurro no casebre, na casinhola das ferramentas, no poço seco, e depois uma nítida vivosa sangueira, e em seguida o quê? Um vertical de luzes cristalizado por um tempo, um limpar de lixões, alguns anos, e outra vez ideias, bandeirolas, tudo da cor conforme os novos cinco ou seis… Alguma convulsão? Pensou-se Axelrod Silva. Num introito purificador monologou; um alguém de mim mesmo, um, que não sei, move-se se vejo fotografias daqueles escavados, aqueles de Auschwitz Belsen Treblinka Majdanek, se vejo bocas de fome, esquálidas negruras, se vejo, vejamos, se penso no relato de minha aluna, eu vou contar professor Axelrod vou contar colada ao seu ouvido: choques elétricos na vagina, no ânus, dentro dos ouvidos, depois os pelos aqui debaixo incendiados, um médico filho da puta ao lado, rápidas massagens a cada desmaio, vermelhuras, clarões, os buracos sangrando…
“… Unir-se, Axelrod, unir-se a alguém, é disso que precisas A quem? A História? Como se ela fosse alguém essa falada História, pergunta andando por aí, como se ela fosse real, olha aí a História, tá passando aí, olha pra ela, olha a História te engolindo, jantas hoje com a História, os filhinhos da História, Marat marx mao, o primeiro homicida, o segundo tantas coisas humanistas sociólogo economista agitador, é tão fundo esse segundo, tão História, tão Estado. E que terceiro, ó gente, que terceiro…
“… E que sangueira, hein filho? que linguagem, que porte que pompas
“Vou entrando na História, endurecendo vou morrendo explodindo em faíscas, a cavernosa vai me comendo, ímã gozoso, já não sou Axelrod Silva, sou nomes, fachadas, sou máscara, já não penso, pensam por mim, sou credo, sou catecismo, sou bandeira, … devo rugir e ser um só com o povo, Axelrod-povo, Axelrod-coesão, virulência, Axelrod-filho do povo, HISTÓRIA/POVO, janto com meus pais, sopa de proletariado pãezinhos mencheviques, engulo o monopólio, emocionado bebo a revolução, lento vou digerindo o intelecto, mas estou faminto, cago o capitalismo, o lucro, a bolsa de títulos, e ainda estou faminto, ô meu deus, eu me quero a mim, ossudo, seco, eu…”
Extraordinário também é o entrelaçamento dos temas de Hilda Hilst – a morte; o tempo que se escoa célere; o envelhecimento degenerescente; os termos chulos usados propositalmente em alternância com uma linguajar acaipirado e em contraste com uma das prosas mais límpidas, mais elegantes e belas do idioma; o já aludido paralelismo de uma linguagem boçal, fútil, mundana; “colunável’ o lado de uma linguagem de fundas litanias semipagãs semi-ritualísticas; a blasfêmia justaposta ao louvor a Deus em termos incendiados do Velho Testamento judaico ou mansos e esperançosos como o amor e a paz trazidos por Jesus no Sermão da Montanha; a libido expressa de forma sublime ou escancaradamente, voluntriamente crua, chocante, naturalista.
Esse entrelaçamento é o que permite a acrobacia simbólica de o relato mais novo, o primeiro, que dá título ao livro, “Com os Meus Olhos de Cão” ser cronologicamente o último, o mais recente estar circularmente ligado ao último, “Floema”, um texto de 1970.
Realmente, Kéres que significa “o sabedor de seu próprio destino”, ou, como relata Hilda Hilst:
“Amós Kéres, matemático, condenado à forca por tentativa de suicídio, justificada a seu ver por ter compreendido que o universo é obra do Mal e o homem seu discípulo” é o início e simultaneamente a consequência daquele Koyo de “Floema” que se isola e se imola em sua perscrutação ofegante de um Deus remoto, Haydum”.
Surpreendentemente, o leitor verifica uma simpatia insuspeitada entre este “conto”, se o pudermos chamar assim, e outra ficção célebre: “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa. Nem remotamente se trata de plágio por parte de Hilda Hilst ou de influência do autor mineiro, apenas os grandes escritores, como argutamente já se percebeu, escrevem a mesma história, com recursos e fabulações novas, próprias de seu estilo e de sua filosófica visão do mundo e angulação pela qual apreendem a travessia humana.
Se em “A Terceira Margem do Rio” o pai por vontade própria se ilha numa canoa no meio do rio caudaloso, segurando os remos ensimesmado, louco ou tomado por uma lepra física ou da alma, em “Floema”, Koyo, geneticamente idêntico ao pai roseano, também se isola construindo paliçadas, armazenando roupas e alimentos em sua destemida batalha contra Deus. De forma impressionante, com um ritmo solene, majestoso e intensamente trágico, Haydum – seria Deus? – tateia e não consegue uma comunicabilidade com o humano Koyo. Esse Deus é um Deus de Kierkegaard, que caminha sobre o fio da navalha dostoievskiano: ou Deus existe ou todo mal é justificável. Aqui ele não é onipotente, não e onisciente, tem perdas de memória e em certos pontos a criação do universo é obra de mero acaso:
“… Não tenho entendimento com os vivos, sempre soube dos mortos, ou sei da tua sombra, nunca sei de ti, desse que come e anda, desse que diz que é dor. Koyo, o pórtico vedado nada sei, NADANADA do homem… Preenchi o vazio com o que tive à mão. Não sei nada das coisas que me dizes… Koyo, descansei, mas no descanso também sofro dessa angústia de ser, e no escuro da noite ME PENSEI”.
Essa divindade nada tem da imagem humana, antropomórfica, que dele o homem criou. Assemelha-se mais aos deuses do Hinduísmo da Índia; e como na telologia de São Tomás de Aquino é mais fácil de se definir por aquilo que NÃO é, falando por frases que mutuamente se negam e mais próximo de uma “lógica” milenarmente chinesa de yang e yin:
“Estilhaço do todo isso que me perguntas, fragmento do nada. Também busco.. Tudo tem nome e ao mesmo tempo não tem… nada do que digo estou dizendo… Por favor, se agora te fazes transparente não comas a transparência da coisa que aprendi.. Limpa o vazio que preenchi… Estou todo dentro, de perfil também sou de frente, sou sempre inteiro… Nada é junto a mim, nada é distante. Abarco o meu próprio limite…”
Os filhos, exatamente como na situação relatada por Guimarães Rosa, não entendem a atitude extremada do pai: “Falam assim os filhos-outros: tínhamos um pai um dia, agora um rasto, nem come o que a mãe põe à mesa, fala em fome, nem nos olha sabes, eu penso que se faz de doido, afinal temos tudo, a casa, a mãe amena, o pato do domingo, sabes o que há com o pai?”
O pai está em luta com Deus, como Israel entrou em luta com o anjo do Senhor: “Escancaro a boca, me deito, as narinas abertas, grito: porco Haydum, chacal do medo, olha-me na cara, não vês que dia a dia estou secando, que a cadela da noite avança a língua… Tateio e sangro. Há um mais fundo nas coisas que não sei… O tempo ao meu redor, tomando tudo, cadela agoureira sobre o ventre, cada vez mais gorda…”
Koyo intui a insiginficância absoluta de suas interrogações:
“Isso quer dizer que a minha pergunta no tempo é igual à mosca que tomba”.
Misturaram-se as vozes do que busca, do que às vezes responde e a voz de um presumível companheiro, representante da comunidade, que quer que Koyo se reintegre na vida de todos os dias:
“… Falo em nome de todos, aprende como nós a aceitar a vida, é bom tudo isso, olha, enche os pulmões, não é bom?”
Quem sabe a febre da busca podia ser usada na publicidade e tornar Koyo rico, pois poderia afirmar: “Tal produto, Haydum, também toma” até o desfecho magnífico, ousado, desafiador dos deuses como o roubo do fogo por Prometeu.
Evidentemente, há mais riquezas incontáveis nas semeaduras de Hilda Hilst do que as que este espaço pudesse, miraculosamente, comportar.
Acercar-se de seus textos é aceitar o riso de um impiedoso esquartejamento de tudo que nos veio mofado, peremptório, falaz, obsoleto. Junto com os supremos nomes que o Novo Mundo deu à sensibilidade humana em todos os quadrantes – o requinte e o enigma de Borges, a textura terrosa e fantasmal de Rulfo, o maravilhoso inserido no real de Carpentier, a imaginação alicerçada na documentação científica de Vargas-Llosa, a sabedoria lúcida da irreparável tragédia humana de Faulkner – ela é o Brasil cósmico e atemporal da originalidade imperecível enquanto houver para tanto humano entendimento.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Hilda Hilst, cósmica e atemporal. Em busca de Deus},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {2},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/3-hilda-hilst/14-hilda-hilst-cosmica-e-atemporal-em-busca-de-deus.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {\textgreater{} Jornal da Tarde, 17 de janeiro de 1987.
Aguardando revisão.}
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