O Evangelho da Solidão de Eduardo de Oliveira
Na parte final desta sua coletânea de poemas, Eduardo de Oliveira transcreve a opinião hiperbólica de Tristão de Ataíde, que o considera “o novo Cruz e Souza” brasileiro, a par de outra que o define como “um triste sonhando coisas lindas… (seu livro) é um porto de miragens, gemendo a insatisfação milenária dos poetas.” A mesma indecisão caracteriza sua utilização dos versos:
A parte numericamente maior de seus poemas prende-se à forma parnasiana e à expressão de sentimentos melancólicos (“de tristeza em tristeza me transporta/ esse pesar de que não me liberto/ e cuja dor meu peito não suporta”) ou de sofrimento virtuoso como laissez passer para o céu (“É preciso sofrer. Sem sofrimento/ a humanidade não se purifica/ A dor se esvai um dia e o bem que fica/ nos há de dar conformidade e alento.”) ou de confissão amorosa igualmente soturna (“Penso em você, quando a tardinha desce/ triste e chorando, como estou agora./ Penso em você, quando desperta a aurora/ que vem da noite que desaparece).
Mas a parte nitidamente melhor de sua poesia encontra-se, sem dúvida, nos acentos de revolta pessoal em que o poeta de cor evoca a África de sua origem com “Tumbeiros do Além” que se inicia:
“Eu sou um pedaço d’África
jogado no chão do mundo.
Tumbeiros malditos
Tumbeiros do Nilo
Tumbeiros-Saara
Tumbeiros do Caos
Tumbeiros-Tumbeiros
Tumbeiros do Além.”
Essa sinceridade emotiva é porém desvirtuada por influência de Gonçalves Dias na métrica:
“Nas plagas distantes
a que me atiraram
tristezas chegaram
cravando-se em mim.
nas terras do norte o negro é fantasma
terrível miasma
de angústias sem fim.”
Essa adesão a métricas cerceadoras do ímpeto expressivo está aliada a um tom em certos pontos condoreiro, que recorda as “Vozes d’África” de Castro Alves, com sua retórica declamatória hoje caída em desuso. São esses enganos, frutos talvez de leituras voltadas para o passado, de valores já consagrados mas cristalizados em sua época específica, que prendem seu voo poético.
Estas observações não querem dizer que o poeta deva se limitar, forçosamente, aos temas raciais. Significam somente que é na temática brotada da négritude de Aimé Césaire e de Léopold Senghor que Eduardo de Oliveira encontra sua maior força. Uma força incerta, que descamba para o lugar-comum de efeito:
“Se o negro levanta
seu porte de ébano
é eletrocutado
é decapitado
a bem do país
a bem da nação
que um dia com sangue
ajudou a construir.”
Mas uma força que adquiri um ritmo e uma expressão próprias, quando o poeta não interfere intelectualmente na sua confecção, mas, como queria Rimbaud, deixa que seu canto flua instintivamente:
“Bocas negras
negras vozes
que têm fome de justiça e de música.
Almas negras
negras preces
que se prolongam num mistério de sombras de infinito.
Cantos negros,
negros hinos
- todos feitos de banzo e de atabaques.
Luzes negras,
negras luas
caídas numa bola de paz e de dor que vem das Áfricas.
Olhos negros
negros prismas
projetando futuros e mocambos.
Belas negras,
negras prenhes
de castas fecundações que os sóis não trazem.
Corpos negros,
negras frontes
que dão manhãs escuras de alegrias.
Sonhos negros,
belos sonhos
com soluços de noites e pedaços do meu povo.”
O contacto com esta raiz expressiva e com os exemplos vigorosos da poesia negra – de Langston Hughes aos poetas contemporâneos do Congo – poderá trazer uma diretriz certa às suas hesitações poéticas, tornando-o uma expressão inédita da nossa poesia virgem – a da negritude brasileira original.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O Evangelho da Solidão de Eduardo de Oliveira},
booktitle = {Racismo e literatura negra},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {1},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/2-literatura-brasileira/13-o-evangelho-da-solidao-de-eduardo-de-oliveira.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {O Estado de São Paulo, 1970/7/23. Aguardando revisão.}
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