O poeta do amor, da solidão, do Mediterrâneo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975/10/24. Aguardando revisão.

“Minha poesia não deve ser considerada mensagem, mas um convite à esperança”. Poeta do amor, da solidão e do Mediterrâneo, o genovês Eugenio Montale tem repetido esta frase com frequência e através de vários anos. Este convite à esperança, defesa, contra os que acusam sua poesia concisa e sóbria de hermética ou pouco comprometida politicamente, o transformou desde a manhã de ontem no quinto autor italiano a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, conferido por 14 dos 15 membros da Academia Sueca de Letras.

O 15º, o radical Arhtut Lundqvist, segundo informações extraoficiais, teria se retirado antes da votação, em protesto pela impossibilidade da Academia premiar com as 630.000 coroas suecas (cerca de 43 mil dólares) o norte-americano Saul Bellow – que era apontado como favorito nos últimos dias – ou o turco Yasar Kemal. A Comissão do Prêmio Nobel justificou sua escolha afirmando que a poesia de Montale “interpretou os valores humanos sob o signo de uma vida sem ilusões, com grande sensibilidade artística”, acrescentando que o pessimismo de sua obra “baseia-se não na misantropia, mas sim no sentido indelével do valor da vida e da dignidade da humanidade”.

Aos 79 anos (ele nasceu no dia 12 de outubro de 1896), sem publicar nenhuma coletânea de poemas importantes há quase 20 anos, Montale é um homem solitário e doente, que se dedica à literatura desde 1921, quando suas primeiras obras poéticas e críticas literárias começaram a ser divulgadas em jornais e numa revista que ele mesmo fundara com amigos, em Turim. Foi nesta cidade – depois de uma adolescência vivida na costa da Liguria, no palácio campestre da família, e em Paris, onde trocou a vocação para o canto lírico pela paixão literária – que ele publicou Ossi di Seppia, seu primeiro e mais importante livro de poema, em 1925. E, 1928, mudando-se para Florença, dirigiu durante dez anos a Biblioteca de Ciências e Literatura, mas foi destituído do carto em 1938 por sua oposição ao fascismo. Nesse meio tempo, publicou outros livros: Occasioni (1930), La Casa dei Doganieri e Altre Poesie (1932) e, já durante a Segunda Guerra e vivendo em Milão, Finisterre, uma obra sombria dirigida contra “os príncipes que só perseguem”.

Ao mesmo tempo em que escrevia poemas e crítica literária, Montale converteu-se também num grande tradutor de Shakespeare, James Joyce, Herman Melville e Eugene O’Neill para o italiano. Suas últimas obras são dois volumes do seu diário, publicados em 1971 e 1972. Antes, lançou La Bufera e Altro (1948), Satura (1962) e Il Colpevole (1966). Atualmente prepara uma coletânea de poemas traduzidos de cinco idiomas, inclusive o português. Numa recente entrevista ele fez a sua definição de poesia, provavelmente a mais simples já formulada por qualquer grande poeta: “É a única arte que se faz apenas com um pedaço de lápis: não custa nada, mas tampouco interessa”.

“Fazer a sesta, pálido e absorto

À sombra de um muro candente,

Escutar entre os espinheiros e os tojos

O estalido dos melros, cicios de serpentes.

Nas gretas do solo ou sobre a trepadeira

Espiar as filas das formigas vermelhas

Que ora se rompem ora se entrecruzam

No topo de minúsculos montes.

Observar entre as frondes o palpitar

Ao longe das escamas do mar

Enquanto se ergue o trêmulo ranger

Das cigarras sobre os cumes descarnados.

E andando sob o sol que cega,

Sentir, com triste maravilha,

Como é a vida inteira e seu empenho

Neste seguir rente a uma muralha

Que tem em cima pedaços cortantes de vidros.

(tradução de Leo Gilson Ribeiro)

Meriggiare Pallido e assorto, um dos poemas do primeiro livro publicado por Eugenio Montale (Ossi di Seppia) é típico desse poeta italiano Prêmio Nobel de Literatura deste ano em sua fase melancólica e estoica diante das adversidades humanas. Solitário a vagar pelas costas de sua Ligúria natal, com suas paisagens de rochedos e mar, o poeta não encontra consolo em nenhum dos elementos da natureza que o circunda. Todo o poema insiste em imagens sonoras dos pássaros, das cigarras ou em visões agudas do mar, das árvores, das minúsculas formigas. Absorto em pensamentos, fugindo do sol hostil e encostado ao muro igualmente inimigo com seu calor abrasador, não há fraternidade no mundo concreto: a emoção, sutilíssima, registra a inutilidade da vida e seus inúteis trabalhos – a vida não passa de secura – o muro inóspito – e agressões: os cacos de vidro contra qualquer intruso.

É uma fase em que Eugenio Montale, escarnecido por críticos e por grande parte do público na Itália, evade-se voluntariamente da poesia grandiloquente de um D’Annunzio e com Ungaretti e Saba introduz uma voz nova, deliberadamente abafada, sutil e que é rejeitada por todos os que superficialmente a consideram “hermética”, por que oposta a qualquer retórica grandiloquente, a qualquer alusão grotesca à Pátria, propriedade bombasticamente exclusiva dos fascistas que três anos antes da publicação desse livro, em 1922, tinham “marchado sobre Roma”, antes de partirem à conquista da Etiópia e seu povo “inferior”.

Avessa a qualquer enfeite barroco, descarnada e essencial, a poesia de Eugenio Montale é rarefeita, raramente comove, no sentido lacrimejante do termo. Seu companheiro Ungaretti – provavelmente maior poeta e mais aderente a uma visão humana das coisas – contrastava com Montale por animar mais a natureza de um sentimento humano, mas Montale é um poeta cerebral, possivelmente seco demais para certos leitores. Lembra, na concisão de suas imagens, um Eliot ou um Yeats, como eles amargo, mas como eles sensível a desvendar qualquer parte de sua vida afetiva ou pessoal à curiosidade geral.

La Bufera e Altro, publicado mais de 20 anos depois em 1956, faz mudar em parte as tendências pessimistas do poeta. Um tom novo de estoicismo, de deslumbramento diante da mulher como misteriosa perturbadora da vida (como no poema L’Anguilla, A Enguia) trazem mais alento a essa paisagem tórrida, desértica, em que a natureza e os homens se unem numa sinistra conspiração contra os demais em guerras, em mudos conluios de indiferença ao sofrimento e à morte.

Eugenio Montale é um poeta que detesta o explícito. É de leitura difícil, com suas alusões frequentes e paragens áridas a poetas de árdua e audaciosa compreensão como Mallarmé.

Se o Prêmio Nobel de Literatura deste ano tinha por objetivo homenagear a Itália, possivelmente Ítalo Calvino, na ausência de Carlo Emilio Gadda, seria uma escolha mais justa: Calvino é um admirável romancista e um dos grandes pensadores filosóficos do nosso tempo, ultrapassando as fronteiras da literatura italiana.

No entanto, Eugenio Montale dignifica um prêmio que semi-lotericamente vinha sendo dado a esmo, segundo critérios geográficos ou indevassáveis da Academia Sueca. Ao falar em tom menor e ao utilizar propositalmente uma linguagem áspera, íngreme como a sobrevivência do próprio ser humano, Eugenio Montale deu à Itália uma voz poética serena no desespero, estoica diante da inexorabilidade da morte, sempre à espreita de uma fuga da cadeia prosaica de acontecimentos que prendem o poeta à sua condição mortal.

Entrevistando imaginariamente a si próprio, certa vez Montale revelou quanto buscava um milagre, um consolo para viver solitário, com percepções que não estão ao alcance do homem comum. Não que ele se tenha colocado numa posição romântica, de torre de marfim, de isolamento dos demais seres humanos não dotados da lucidez cegante da poesia filosófica. Eugenio Montale não é um poeta aristocrático: é um longínquo descendente de Lucrécio, o poeta latino que em De Rerum Natura resignou-se à ideia da destruição total que a morte contém, não intervindo em favor dos seres humanos deuses nem potências sobrenaturais e compassivas. Bastam-lhe alguns lampejos da vida efervescente de cores em torno, um segundo êxtase, depois sobrevém a planura da neve ou do túmulo: que importa?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “O poeta do amor, da solidão, do Mediterrâneo .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.