Clarice num derradeiro espelho diante de si mesma

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978-12-23. Aguardando revisão.

A morte recente de Clarice Lispector dá à publicação póstuma de seu último livro, Um Sopro de Vida, um alcance arqueológico. São frases desenterradas, lascas de uma intenção fronteiriça que a depauperação orgânica impediu de realizar melhor. É um rascunho, um esboço que retrataria globalmente as suas mais fundas preocupações finais. Para quem conhece, no entanto, o inimitável sortilégio que se desprende de A Paixão Segundo G. H., Laços de Família, Felicidade Clandestina e outras criações suas, permanece a insatisfação diante da obra a ser revista, podada, enxertada para alcançar a perfeição altíssima dos momentos anteriores. Para o leitor que não conhecer nem o nome de Clarice Lispector, esses círculos concêntricos de tensão em torno de si mesma parecerão indecifráveis e talvez sustem a leitura.

No entanto, tateando entre as páginas desse derradeiro espelho diante de si mesmo, na ante-sala já da morte, refaz-se todo o itinerário da escritora mais metafísica da literatura brasileira que trouxe à nossa linguagem literária um enriquecimento filosófico e uma orignalidade surpreendente e sempre viva do dizer.

Clarice Lispector fascina uma fração da humanidade: aquela que não vê na literatura os limites impostos pelo mero “estilo literário perfeito em sua beleza”, nem pela utilização dos vocábulos apenas para pregar e demonstrar um teorema social apriorístico. Possivelmente em toda a literatura das Américas, sem exagero, não haja vibração transcendente, tal busca mística insaciada: nem em Melville, nem em Borges, nem em Rulfo ou Alejo Carpentier.

Os contos e romances deixados por ela aproximam-se mais de um “livro de horas” medieval, de uma clepsidra na penumbra, de uma ampulheta completa em seu mistério. Diáfana, delicadíssima, esta tesitura escrita desabrocha sempre passo a passo junto com a sensibilidade do leitor. Obra por excelência feita de silêncios, de ocos, de vazios que só o leitor compartilha com a autora, é de uma intensidade passional próxima de Kierkegaard e de Heidegger, movendo-se inquietamente no plano do enigma religioso do Ser.

Todos os temas específicos da escritora pernambucana, vinda ainda criança para o Brasil, para escapar com sua família das caçadas dos cossacos aos judeus, intitulados pogroms da Rússia czarista, estão presentes nessa despedida da palavra: a fugacidade de tudo, a pulsação do Tempo, o desencontro amoroso, a solidão, a angústia, os animais e como ápice febril dessa busca humanamente eterna: Deus.

Tipicamente, a primeira ou uma das primeiras referências, logo às primeiras linhas, toca ao mesmo tempo no Leitmotiv do Tempo e na inovação ousada de exprimir-se por frases nunca banais:

“Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre?”

É o clima de seu conto de uma indagação perene, “O Ovo e a Galinha”: “Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna visto um ovo há três milênios - No próprio instante de ser o ovo, ele é a lembrança de um ovo. - Só vê o ovo quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. - Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo… O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente, ele não existe.”

São tentativas de apreensão do inapreensível que se reflete agora: “Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era… O Tempo não existe.” Inconscientemente a escavação de Clarice Lispector é feita sempre fazendo tábula rasa do raciocínio cerebral, devastando as possibilidades lógicas, científicas ou confiáveis de se apalpar o mistério de se ser: o intelecto é um instrumento quebrado, inútil para a pesquisa além do mensurável aparente. A intuição inteligente, a inteligência sensível é que dirigem então o caminho que ela já afirmara como sendo seu, ao responder por escrito a um questionário:

“Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.”

Se em Kafka a admissão ao Castelo no alto da montanha era proibitiva, um anátema jogado sobre o agnóstico, em Clarice Lispector esse afã de interligação com o cosmos não pressupõe uma aceitação. Humílima, ela não busca o que está fora, quer, como todos os místicos, a reunião com Deus, eis que Deus não está fora e “a separatividade e a ignorância são o pecado num sentido geral”. Por isso a palavra carrega medos abissais: escrever encerra em si “o perigo de mexer no que está oculto”. E outro tema que a autora repisara constantemente retorna: escrever era sina contra a qual lutara inutilmente, nunca quisera ser “escritora”, festejada, celebrada, elogiada. Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Hilda Hilst escrevem como quem exorta uma Divindade ignota a revelar-se: são os escritores aquém e além da Literatura. Este percurso feito usando a palavra como bússola imprecisa, porém, não elimina a frequência com que a indagação atinja, como mera sucata, uma beleza de paradigma estético: “O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje”, “tinha quinze anos quando começou a entender a esperança”, “porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser”.

Toda a procura - mesmo através da melancolia, da dúvida, da dor, da solidão, da angústia - está caracterizada por uma atmosfera de religiosidade alógica, que às vezes se aproxima do Zen budismo oriental:

“Eu imaginei o barulho límpido de gotas de água caindo na água”

Um Sopro de Vida apresenta esta dificuldade para o leitor: não pode ser abordado como o primeiro livro de Clarice Lispector que alguém se disponha a ler, pois é uma visão retrospectiva, globalizante, da sua extraordinária genialidade poética, da sua graça divina de ser através do escrever. Para os leitores de um grande escritor ou poeta que denunciam em altíssimos termos estéticos os conflitos éticos da injustiça social, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, tampouco a sua literatura - se é que se pode circunscrever a criação a essa nomenclatura convencional - se revela imediatamente acessível. No entanto, a leitura de contos como “Feliz Aniversário” ou “Amor” comprova, com nitidez microscópica, quanto Clarice Lispector vislumbrava, claramente, o arcabouço da aparência que não oculta uma repartição imoral de bens! Quanto o aconchego de um “lar” contém em si próprio, as sementes da percepção e da revolta! O obstáculo maior, no entanto, para quem lê Um Sopro de Vida é a densidade dos parágrafos que como clarões ponteiam o fluxo confessional, como por exemplo:

“Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar - a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade, perdendo logo a estação e a nova partida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus”. Ou ainda: “Não há nada no mundo que substitua a alegria de rezar”.

Para despersonalizar-se, a autora se cinde em dois: o Autor e a Personagem dialogam e monologam, unidos pela mesma meta de uma totalidade perdida e a ser recuperada e separados pela via do raciocínio sobre si mesmo e a fantasia livre da autopercepção. Falam ambos, porém a mesma linguagem mística incontida de San Juan de la Cruz e sua metáfora da noche oscura em que está submersa a alma quando parte em busca de Deus:

“É esta a noite escura que quero um dia encontrar fora de mim e de dentro… Não, por algum motivo secreto sinto uma grande carga de mal-estar e ansiedade quando atinjo o cume nevado de uma felicidade-luz… Quando eu era uma pessoa, e ainda não um rigoroso pleno de palavras, eu era mais incompreendido por mim. Mas era-me aceito na totalidade.”

Há uma censsura sensível, em vários contos igualmente, entre quem escreve e a realidade circundante, como que uma arritmia que não lhe permitisse integrar-se ao mundo dos demais e a condenação a uma solidão que passa a ser cultivada como resguardo contra a ameaça de infelicidade. “Sou como um estrangeiro em qualquer parte do mundo. Eu sou do nunca.” Paradoxal segurança, essa solidão se ameniza, como em vários trechos de outros livros seus, com a presença de animais: “Ter contato com a vida animal é indispensável à minha saúde psíquica. Meu cão me revigora toda. Sem falar que dorme às vezes aos meus pés enchendo o quarto da cálida vida úmida. O meu cão me ensina a viver. Ele só fica ‘sendo’. ‘Ser’ é a sua atividade. E ser é a minha profunda intimidade.” Até no nome, já utilizado anteriormente até para designar personagens masculinos, evidencia-se a simbologia: o cão é Ulisses, o que foi exilado de casa durante longa e arriscada jornada determinada por deuses irados Bichos e seres humanos equilibram-se todos no efêmero de um dia, o instável, o precário, todos nós inapelavelmente condenados à morte.

Essa imprevisibilidade de se ser desfaz-se nos momentos de Revelação ultra-humana ou quando sobrevém a morte, possível ante-câmara do Cochecimento, ou na solidariedade do amor que une todos os que caminham rumo à deteriorização: “Mas um dia eu serei o segredo da vida. Cada um de nós é o segredo da vida e um é o outro e o outro é um”. Porque, ecoando Shakespeare e Calderón de la Barca, o desdobramento de si mesma, sua sósia imaginária reconhece o fictício da vida, o sonho acordado que é a vida, tudo conduz ao desejo de libertação da temporalidade e da ilusão da existência dita “real”: “O que me guia é o projeto de amanhã vir a ser amanhã.” Escrever então, seguindo uma raiz borgiana, é somar à irrealidade do real apreensível uma realidade adicional: a da escritura que se autoconsome. A palavra que não for encantatóra como a de Sheherazade meramente prolonga de um dia a vida, não recria o que ela denomina de “eu-mim” a fundir-se no “eu-global”, aquele Nirvana da indistinção prístina dos textos budistas. O “Nada” equivaleria a uma “disponibilidade livre” sinônima em si da Graça.

A chegada ao estado de graça passa pela plenitude do vazio, pelo desapego ao mundo, pelo escrever “para nada”: “Eu perdi o meu estilo: o que considero um lucro: quanto menos estilo se tiver, mais pura sai a nua palavra”. Pois o vital é o despojamento total, daí a proximidade com a Origem que tem a Natureza, os animais, os seres intelectualmente mais simples, todos mais próximos do latejar do Princípio, afastados da Inverdade da vida codificada pela sociedade: ultrapassar o pensamento seria readquirir-se:

“Qual é a palavra que representa o desconhecido que sentimos em nós mesmos? Há muito que já aderi ao desconhecido. Qual é a realidade do mundo? porque eu a desconheço. A natureza não é casual. Pois ela se repete, e o acaso repetido se torna uma lei, esses acasos que não são acasos.”

Seria inútil procurar um nexo narrativo, cronológico, compreensível logicamente nestes fragmentos de frases e meditações que se sucedem. Ao contrário de todas as suas obras-primas anteriores, algumas das quais lhe garantem de forma absoluta uma categoria extraordinária em toda a literatura que se faz no século XX, aqui Clarice Lispector escreve, mais do que nunca, para si própria, o livro sendo a “sombra” de seu eu. Não são, contudo, meras divagações sem sentido nem momentâneas que percorrem esse espaço impresso. Há toda uma coerência interior da escritora que desde suas primeiras linhas publicadas sempre esteve absorta pela visão ineditamente nova que trouxe ao nosso idioma sobre as palvras como fragmentos de orações leigas, esotéricas como a poesia de um Fernando Pessoa. A literatura, é preciso reafirmar, é limitação (“Me coisificam quando me chamam de escritor”) porque escrever não é passatempo, nem narcisismo, nem esculpir parnasianamente frases de beleza perfeita e irretocáveis.

Escrever é uma centelha da gnose, o início titubeante do Conhecimento: escrever não é veículo nem meio é o fim em si. Por isso a deslumbrante autora de Felicidade Clandestina deixou como legado post-mortem este livro cifrado, embora feito de frases aparentemente fáceis de compreensão. A dificuldade está em que, sem querer ser hermética propositalmente, ela, não obstante, iniciou uma peregrinação rumo ao interior de si mesma que quem não tiver percorrido os roteiros dos livros anteriores dificilmente, se não de todo impossível, encontrará pontos de apoio para sustentar a leitura. Devassa-se involuntariamente aquilo que ela própria designava como seu “pensar-sentir”, invade-se a sua intimidade mais recôndita, quando ela expõe perante si mesma a sua dualidade sem preocupações estéticas nem pudores puritanos.

Como não há amarras, neste Livro Final, que talvez a própria autora tenha pressentido como sendo o último que completaria, há a liberdade absoluta de revelar-se como música: uma “Rapsódia com Clarineta e Orquestra, de Debussy” é o conteúdo, já não textual do livro, e a geometria (penso triângulo), é aabolição da condição humana sob seus aspectos usuais (sou setembro), o enigma à espreita no olhar que defronta duas realidades: a de quem contempla e a do contemplado:

“Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o pensamento é a ‘coisa’. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta. Inclusive a coisa que é uma grande prova do espírito. Palavra também é coisa - coisa volátil que eu pego no ar com a boca quando falo. Eu a concretizo. A coisa é a materialização da área, energia. Eu sou um objeto que o tempo e a energia reuniram no espaço. As leis da física regem meu espírito e reúne em bloco visível o meu corpo de carne. A paralisia pode transformar uma pessoa em coisa? Não, não pode, porque essa coisa pensa.”

A noção de durée bergsonia que Proust incorporou em sua incomparável À la Recherche du Temps Perdu é a mesma na escritora brasileira, obsecada com a duração de tudo e com seus corolários surrealistas: “Se eu deixar uma folha de papel num quarto fechado ela atinge a eternidade?” ou com o trecho belíssimo em que faz referência ao deserto que seria a dualidade do ser e do não ser contida na miragem:

“O deserto é um modo de ser. É um estado-coisa. De dia é tórrido e sem nenhuma piedade. É a terra-coisa. A coisa seca em milhares e milhares de trilhões de grãos de areia. De noite? Como é gélido esse lençol de ar que se crispa trêmulo de frio intensíssimo de uma intensidade quase insuportável. A cor do deserto é uma-não-cor. As areias não são brancas, são cor de sujo. De dia o ar faísca. E há as miragens. Vê-se - por tanto querer ver - um oásis de terra úmida e fértil, palmeiras e água, sombra, enfim sombra para os olhos que ao sol doido se tornam verde-esmeralda. Mas quando se chega perto - bem: simplesmente não era. Não passava de uma criação do sol na cabeça descoberta. O corpo tem pena do corpo. Eu sou uma miragem: de tanto querer ver-me eu me vejo.

“Ah, os areais do deserto do Saara me parecem longamente adormecidos, intransformáveis pelo passar dos dias e das noites. Se suas areias fossem brancas ou coloridas, elas teriam”fatos” e “acontecimentos”, o que encurtaria o tempo. Mas da cor que são, nada acontece. E quando acontece, acontece um rígido cacto imóvel, grosso, intumescido, espinhento, eriçado, intratável. O cacto é cheio de raiva com dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo: ele te odeia em cada espinho espetado porque doi-lhe no corpo esse mesmo espinho, cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa. Para suavizar essa minha vida que pinga lenta de gota em gota - tenho o poder da miragem: vejo oásis úmidos que se desvanecem quando chego perto para buscar abrigo materno. Uma vida dura é uma vida que parece mais longa. Mas, mesmo assim, me surpreendo de como é que já é maio, se ontem era fevereiro? Cada minuto que vem é um milagre que não se repete.”

Com a introspecção profética de todo grande artista, nas páginas finais deste livro propositalmente desordenado, desigual, com lampejos de fascínio e trechos ousadamente kitsch, é a própria Clarice Lispector que lega a sua metáfora de vida: somos todos intérpretes de um show que Deus, um Deus absurdo para a limitada compreensão humana, dirige. E implicitamente separa o artista do ser humano: aquele pode morrer, o outro permanece na eternidade, o único vaticínio falso desse tortuoso caminho rumo a si mesmo: enquanto houver sensibilidade, a artista profunda, deslumbrante que é Clarice Lispector permanecerá, resgatando à vida - e agora também à arte e à morte - o seu sentido oculto.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1978) 2022. “Clarice num derradeiro espelho diante de si mesma .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.