Em busca da libido perdida
Que inferno a vida, não é, doutor? indaga uma das infinitas mulheres martirizadas pelos maridos, sátiros monstruosos e velhuscos, em um dos contos de A Trombeta do Anjo Vingador, nesta 3ª edição com capa esplêndida da Editora Record, 124 páginas. Na revisão atual do livro, publicado em 1977, Dalton Trevisan ao mesmo tempo que resume o número de linhas que relato os nichos desse inferno, injeta mais enxofre e dor em cada uma de suas vidas aqui colhidas em relances sem piedade. É sabido, já foi proclamado inúmeras vezes, que o magnífico autor paranaense tem como objetivo final, como aliás o tinha também Guimarães Rosa, atingir a perfeição do conto-telegrama, do kaikai de 17 sílabas apenas. Arqui-surrado também é o argumento dos que leem apressadamente e logo se enfastiam: “O Dalton conta sempre as mesmas histórias, com pequenas alterações, com os mesmos personagens, as mesmas situações. Já cansou”. É um engano desculpável porque são mínimas as mudanças e inegavelmente insistentes as obsessões do autor. Há, porém, uma diferença que anula qualquer cansaço do leitor diante de novo giro do carrossel de Curitiba que ele gira de um livro para outro.
O pano de fundo é a eterna guerra conjugal com troca de papéis: às vezes a esposa é a santa pacientíssima, mártir heroína que perdoa sempre a bebedeira, os insultos, as humilhações libidinosas do marido tarado irresponsável. De outras vezes a situação se inverte: a mulher, carmim na cara inteira, calças compridas justas, mói vidro na comida do marido e joga em sua cara a confirmação irrespondível: a filha não é tua, é do dentista. E a menina, de fato, não tem um traço que não seja do pai, mas é aceita assim mesmo pelo “traído”. Há ocasiões intermediárias em que a mulher e o homem selam como que uma paz truncada, um armistício sórdido: desde que ele assine os cheques, ela lava as mãos de tudo o que ele fizer, fora ou dentro de casa. Ou a célebre mala dele arrumada e colocada na porta de casa, como indício de que naquele lar decente ele não tem mais lugar, é desfeita pela sedução da megera santa nos braços da lascívia irresistível do machão insaciável até debaixo do chuveiro aberto.
Na realidade, os contos de Dalton Trevisan são, em forma urbana moderna, os autos medievais em que desfilavam, nos adros das catedrais românicas e góticas da Europa, os pecados capitais: a avareza, a luxúria, a gula, a inveja, todos cores do mesmo espectro prismático do egoísmo feroz. As vidas miseráveis vividas nesse teatrinho mambembe de uma Curitiba de funcionários públicos, vendedores de frutas, fazendeiros de pequenas chácaras arruinadas, meninas saídas de colégios diretamente para o bordel de cafetinas sinistras – todo esse teatro tragicômico espelha fielmente as crendices, os critérios, as expectativas da pequena burguesia. Seria absurdo procurar nesse poço da libido insatisfeita o álibi da luta de classe, da fanática predominância do econômico sobre o vital, o dinheiro “explicando” a busca encarniçada do orgasmo. Nem tão próxima da celebérrima “repressão da libido” freudiana estaria qualquer arrumação apressada do microcosmo curitibano em convenientes gavetas rotuladas de esquizofrenia, complexo de Édipo, tara, satiríase etc. etc.
À medida que se lê mais atentamente cada livro novo ou atualizado do soberbo contista paranaense, surge, isso sim, uma noção difusamente bíblica, religiosa, cristã da visão que Dalton Trevisan deixa entrever do mundo e de seus próprios habitantes que ele retrata lapidarmente.
Nos últimos livros tem apontado aqui e ali, com mais frequência, uma série voluntariamente irônica de alusões literárias. Algumas são fugidias: a colegial de dez anos que se entrega ao velho baboso e hercúleo, ao sentar-se ao lado do “Mister Curitiba” capaz de proezas sexuais fantásticas, está ainda agarrada à bolsa do seu Curso Camões. Sutilíssima alusão ao poeta que, inspirado em Petrarca e Dante, cantou sobretudo o casto amor que transcende a carne e a morte, o tempo e a desmemória. Fortíssimo contraste com o prosaísmo direto do fauno careca, enrugado, que se alimenta de afrodisíacos potentes receitados pelo farmacêutico que o mantém, pelo menos por algum tempo, ainda em pleno “vigor do homem”. É literária também a abertura de uma história: “Janeiro e o menos cruel dos meses”, consabidamente calcada no verso de Eliot: “April is the cruellest month”. Até o famosíssimo monólogo de Hamlet é citado de forma esquiva: “Dorme? Sonha talvez? Não, morre dos mil uísques nos sete inferninhos, os mil e um beijos das bailarinas nuas, rematadas pelo divino frango à passarinho do Bar Palácio.” Ao lado da erudição literária, da meditação filosófica angustiada, sempre a nota, herdada mais de Eça de Queiroz, o Eça da primeira fase, do que de Machado de Assis, quer nos parecer: “Salta uma banana ao rum para o doutor.” É um prosaísmo de arrotos, de mãos que com o dorso cheios de manchas da velhice não podem acudir ao jogo amoroso, ocupadas que estão em manter na posição a dentadura do maxilar inferior que, como teclado emergente, cai sempre e desfaz o ar de conquistador inveterado apesar da idade.
No plano sociológico e da psicologia, o furor sexual de maridos, adolescentes virgens e compradas por pouco dinheiro, de mulheres adúlteras ou frígidas traduziria um dado que não suscita desacordos em geral: a repressão que os tabus sexuais impõem ao brasileiro não levam à sublimação do sexo, mas sim à sua perversão, à sua exasperação, à tara.
Curiosamente, constatará o leitor, entre tantos encontroes furtivos com meninas que mal atingiram a puberdade, com “rainhas da noite” que fazem strip tease em bares de última categoria, com prostitutas que à luz clara revelam rugas, peles murchas, cabelos pintados, dentaduras mal ajustadas, curiosamente há pouco gozo real. O sexo como simulacro do amor pode vangloriar os machões de cabelos grisalhos de proezas dignas de garanhões imberbes, mas nem o prazer surge para apaziguar tanta angústia. Quase como Nélson Rodrigues, Dalton Trevisan como que sugere que as orgias plurais ou a dois são uma caricatura do prazer genuíno gerado pelo amor e pelo respeito mútuo entre um homem e uma mulher.
Por que então a interpretação religiosa dessas pantomimas da paixão, morte e sofrimento dos amantes empedernidos? Porque sempre ao êxtase, buscado ou fugidio, efêmero ou irreal, está unida toda uma estrutura de referências transcendentais, quase sempre da liturgia católica ou do Velho Testamento. São inúmeras as presenças religiosas: o Cristo no quadro obrigatório da Santa Ceia kitsch de metal diante da mesa de jantar olha com olhar de censura, acusador, para o pecador. O filho se decide a renegar o pai estroina incorrigível que inferniza a esposa dizendo de si para si: “Se Pedro, que era Pedro, três vezes negou a Jesus, e mais era Jesus, por que não podia ele negar o pai?”
Há indícios mais convincentes ainda: a volta ao “lar” é temida pelo infrator que já prevê a passagem esgueirada na sala debaixo da pintura ou escultura de São Jorge com o dragão, pronto a lancetar seu crime de tarado que deixa a família à míngua. Depois, quando os amantes crepusculares conseguem atrair para suas redes as meninas fresquinhas, desprovidas até de seios como indicadores de caracteres sexuais secundários, os “Mister Curitibas” hercúleos invocam o nome de Deus: “Ai, Senhor, não mereço”. Chamam as prostitutinhas assanhadas de “anjos”. E, afinal, os casados desta guerrilha dos sexos sacramentados não são descritos literalmente como “condenados a crucificar um ao outro na mesma cruz”?
Esse freudiano ou reichiano sentimento de culpa com relação à satisfação da libido, porém, é apenas a face mais óbvia do recalque que desanda em esquizofrenia: de um lado, a esposa santíssima mãe dos filhos, do outro, as outras desfrutáveis até o sadismo, a dor, literalmente a perdição de qualquer dignidade individual. O aspecto mais rico desse poliedro da busca da libido perdida brasileira, em sua versão curitibana, é o da fantasia como passaporte de escape da realidade chã. A sedução da menina saída do colégio, numa “compra” arranjada previamente pela maior cafetina da cidade, só é obtida por meio da imaginação, que cria uma transrealidade para o sedutor fogoso:
“Monstro de mil máscaras, desta vez quem seria? O confessor na cela da freirinha de sete saias, a madre escutando atrás da porta? Um estropiado de guerra, a enfermeira suspensa no pescoço, girando sem parar a cadeira de rodas? O noivo, de pé no corredor, rasga em tiras a calcinha, os pais da menina assistindo à novela na sala? Quem sabe o velho leão fugitivo do circo… Ela a domadora de botinha preta e chicotinho?”
A posse, ou o seu ritual simulado, exige uma grande dose de histrionismo: são papéis que o conquistador barato e sórdido cai desempenhar, já que a realidade é intolerável por ser demais cruel. Daí a invocação em vão, do amor, passa a desfigurar-se: a carícia transforma-se em sádico bofetão, o monossílabo entrecortado de prazer passa a ser pago por chicotadas masoquistas do homem “domado” pela domadora.
Paralelamente a essa maravilhosa fartura de imagens complexas, a permanência do rebaixamento da mulher, das filhas, dos filhos, de qualquer pessoa que represente um estorvo para a canalhice do comércio carnal comprado, fantasiado, imaginado. Mais do que rebaixamento: a animalização da companheira e dos rebentos: as filhas metamorfoseiam-se em “pivetes”, todas, como as duas filhas ingratas do arrogante e idiota rei Lear com pedras na mão, os filhos, desprovidos de qualquer aura de amor paterno, aparecem como meros trombadinhas a sugarem-lhe o dinheiro de carteira. A mulher, indefectivelmente, é a arara bêbada, a araponga louca que telefona insistentemente para o escritório de onde ele não chega para jantar em casa, a megera indomável e sem apetite para longas e labirínticas jornadas pelo Kama-Sutra adentro, página por página revista e melhorada pelo know-how pátrio auriverde.
Dalton Trevisan, sabiamente, não adere à execração do machismo, não transforma seus contos esplêndidos em panfletos em prol do feminismo. Eles refletem, por si sós, espontaneamente, a situação de inferioridade da mulher diante do “bom provedor da família e da casa”. Sem estar preso a rótulos estreitos, ele esbate seus personagens, tiranos e mártires, opressores e oprimidos, não diante do Tribunal político da História, que, como todo pó humano, ao nada reverte mais cedo do que tarde. Não: ele inicia um número imenso de contos com um dos lesados ou vampiros como que se confessando a uma autoridade estabelecida: - “O Doutor dê um jeito no João”. O doutor é frequentemente um advogado que tenta arbitrar entre os dois lamentosos ou arrogantes querelantes, buscando identificar com justiça imparcial quem é o réu, quem é a vítima. Até um sargento serve como mediador, até um médico – tudo fazendo as vezes de um padre no confessionário. Porque os personagens de Dalton Trevisan precisam confessar-se, desabafar com outras pessoas, amigos, donos de botequins, videntes milagrosos, cafetinas, leões de chácara, toda a súcia que vive dos vícios da noite, semi-seres do submundo que os Mandamentos puritanos da Moral e dos bons costumes exilaram, a sangue e fogo, das muralhas sacrossantas da vida.
Evidentemente, este é um mundo de monólogos, de anacolutos, de solidões murmuradas para um céu surdo, cego e mudo, cinzento e distante ou azul e lépido, demasiado longínquo dos queixumes e tragicomédias humanas. Será preciso que, como na Bíblia, soe novamente a trombeta do Anjo vingador para que, depois da ressurreição da carne putrefata, haja o Juízo Final e Deus e sua coorte possam julgar os transgressores e destiná-los a novo Purgatório, recém-emersos que são deste Inferno terrestre, sem esperança sequer do Paraíso perdido.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Em busca da libido perdida},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/12-em-busca-da-libido-perdida.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1981-11-21. Aguardando revisão.}
}