Gore Vidal, um escriba impiedoso
Gore Vidal de novo! Para os conservadores nos Estados Unidos, mais um motivo para afiar a lâmina de suas baionetas e lhe arrancarem o couro vivo. Para o leitor inteligente, mais uma sátira iconoclasta, mais uma destruição de todos os mitos solenes que dão uma aura de perfeição à bandeira estrelada. Ele próprio escolheu seus inimigos, livro após livro e através de suas fobias pessoais: adora os EUA mas rejeita os regimes impostos pelos irmãos siameses: os partidos democrata e republicano. Tanto faz, ele diz, ambos são insensíveis imperialistas a favor das classes dominantes, com uma ressalva que já virou piada internacional: enquanto os republicanos querem dominar o mundo com todos os povos subjugados forçados a falar inglês, os democratas, mais compreensivos, acham que os nativos podem manter suas próprias línguas.
Outra de suas ojerizas: o suposto controle que os judeus têm dos meios de comunicação ("por isso sou tão combatido", explica); e um racismo virulento contra "o perigo amarelo", que ele vê como uma sinistra aliança do Japão próspero com o bilhão e tanto de pessoas da China Comunista. É preciso, adverte, unir-nos aos russos, para manter a raça branca diante de novas Pearl Harbors. Se o racismo for levado às últimas consequências, ele estará a salvo: tem bastante sangue índio, crê, para salvar-se caso os mestiços dominem os brancos... Autor da bomba incendiária que é The City and the Pillar, é neste romance que estarreceu a América que ele aborda, pela primeira vez na história da literatura norte-americana, abertamente, o tema tabu do homossexualismo. Mira é outro de seus personagens audazes: um travesti que assume ora características de um sexo, ora de outro, indiferentemente.
O polêmico e hilariante autor é famoso por seus epigramas, o que em inglês se chama "one liner", o ataque vitriólico, à la Oscar Wilde, de uma única frase arrasadora, de ácido sarcasmo. Contra Truman Capote, o autor sulista, que imita em seu sotaque regional com perfeição, dispara a respeito de "A Sangue Frio": "trata-se da confusão do Capote", como se fosse a síndrome da Aids, por exemplo. Diz ainda: as universidades tentam sufocar a literatura viva em seminários que dão sono e polpudos honorários a seus professores: dissecam a alma do texto escrito até transformá-lo num manuscrito do Mar Morto.
Ele já fez sua inclusão, inventiva, na ficção científica ou na literatura profética de antecipação do futuro com Kalki mas seu pendor é estudar a História dos Estados Unidos numa série de grossos volumes: Burr, 1876, Lincoln e Empire.
Agora aquela Las Vegas do celuloide, Hollywood, dá o nome a seu último livro, recém-publicado nos EUA. Com sua técnica de misturar personagens reais com os de ficção, escolhe as versões de fatos historicamente fundamentados que mais parecem verossímeis e o resultado é divertido, absurdo, irônico ao extremo. Theodore Roosevelt, o truculento presidente que tinha por máxima tratar os povos latino-americanos e outros economicamente débeis “com um palavreado suave é um porrete na mão" e Franklin Delano Roosevelt, o aristocrata idealista do New Deal desfilam por suas páginas com personagens fictícios como Caroline Basie, que de proprietária, em parte, do jornal Washington Tribune, se transforme numa diva do cinema, e seu irmão bissexual Blaise.
De certa forma, concordando com MacLuhan - o teórico candente da “aldeia global” e da predominância do visual em atual estágio de civilização - Gore Vidal acha que o público é conduzido como mansos carneiros ao matadouro pela TV e pelo cinema, capazes de moldar opiniões de massa: "assim se pode controlar a opinião do mundo". Como em todos os seus livros anteriores, os escândalos e a corrupção campeiam impunes, abafados na imprensa e talvez inextinguíveis. A literatura deixou de ter sua função profética: o material humano que se apresenta à ficção é mediocre demais. Mas ele insiste: "minha tarefa é profetizar e prosseguir sempre..."
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Gore Vidal, um escriba impiedoso},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/06-eua/01-gore-vidal-um-escriba-impiedoso.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, Sem data. Aguardando revisão.}
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