Giorgio Bassani e o Conto Moderno Italiano
Aos 47 anos de idade, Giorgio Bassani já obteve repercussão mundial pela descoberta de O Leopardo, de Lampedusa, que revelou ser uma das obras-primas do romance italiano, que encerrava todo hiali d’um longo ciclo realista, da novela siciliana, a partir de Giovanni Verga. No entanto, por detrás de sua modéstia, oculta-se uma personalidade de narrador sensível, reconhecido na Europa por prêmios nacionais (Prêmio Sfresa, na Itália e Veillon), obtendo grande sucesso também na França seus dois volumes de contos ambientados na sua Ferrara natal: Gli Occhiali d’Oro e Il Giardino dei Finzi-Contini. Inspiradas na perseguição antissemita durante o fascismo, na guerra dos partigiani aos alemães, essas narrativas relatam porém vivências humanas profundamente trágicas, de personagens repudiados pela sociedade e frustrados em seus desencontros amorosos: o farmacêutico homossexual de Gli Occhiali d’Oro que é fuzilado pelos resistentes no clube fascista, aonde ia em busca de jovens e o judeu de Il Giardino dei Finzi-Contini, escorraçado inclemente por uma sociedade embrutecida.
Arguto intérprete de Proust, Bassani se sente fascinado, com o grande romancista francês, pela complexa trama psicológica dos personagens em constante mutação, pelos universos abissais da consciência e da alma humanas. De família judia, mas integrada na vida italiana e que é conhecida nacionalmente pelos excelentes médicos que deu em cada, há mais de um século, desde jovem, porém, ele se sentiu atraído pela literatura, frequentando em Bolonha os cursos do crítico e professor Roberto Longhi, que primeiro o estimulou em seus escritos adolescentes e ainda hesitantes. Aos 18 anos ele passa a dirigir o suplemento literário de um dos jornais de Ferrara, produzindo inicialmente poemas, para só mais tarde dedicar-se à prosa. “Como toda a burguesia italiana na sua esmagadora maioria, abraçara o fascismo, eu também participei desse movimento a princípio”, declara o autor. Foi só daí a poucos anos, com o recrudescimento das perseguições antissemitas, que passou a engrossar a fileira oposta, dos combatentes do fascismo, devotando anos inteiros de sua vida à política, em detrimento de sua criação literária. Como chefe político de um grupo de resistência extremamente jovem, ele se dirige a integrantes de sindicatos, a camponeses, a socialistas militantes, durante 1941 e 1942. Participa do terrível cerco de Roma, que durou nove meses e que manteve a Cidade-Eterna sem víveres: com a população romana passa fome e expõe diariamente sua vida ao perigo das emboscadas nazistas. “Foi depois que recobrei forças – explica – que compreendi que eu não era, no fundo, um homem político. Na prisão eu tivera o pressentimento de que se eu morresse, teria morrido sem me revelar, sem ter me realizado, pois não é por meio de atos políticos que eu me realizarei”. Mas, embora sentisse que a literatura pudesse ser o seu caminho, sentia-se demasiado humilde perante as suas exigências criadoras, entregava-se somente, durante algum tempo, à alegria de ter sobrevivido ao caos da guerra e da luta civil e de ser agora um homem livre. Iniciando sua carreira profissional como jornalista num semanário, retoma a poesia e pouco a pouco escreve contos, artigos críticos, o esboço de uma novela, sempre revelando o lado sombrio, trágico mesmo, da sua sensibilidade, através da qual vê a vida e os choques entre os seres humanos.
No conto que dá o nome à coletânea, “Gli occhiali d’oro”, é a primeira vez que Bassani introduz diretamente o “eu” individual do autor que relata os trágicos acontecimentos vividos pelos personagens, o adolescente de então era já o esboço do futuro escritor e analista das paixões humanas. O tema dessa narrativa soturna foi inspirado no médico que, em Ferrara, o operara das amídalas. Esclarece o escritor italiano: “Mais tarde, vim a saber que era homossexual e o percebi instalando-se no cinema ao lado dos soldados. Uma vez, em Bolonha, o vi seguir estudantes. Esse homem foi fuzilado pelos partigiani depois da guerra. O infeliz, de fato, só frequentava rapazes e estes, naquela época, eram na grande maioria aliados dos nazistas. Ele os procurava portanto nos meios fascistas e foi desse modo que recebeu o rótulo que não merecia de fascista… Em ambos os meus livros o mesmo tema persiste: o do amor que se reúne à morte: quando o médico diz ao rapaz:”Então, amanhã nós nos veremos talvez” e o jovem falta ao encontro, causando o suicídio do velho. Ele talvez não fizesse esse gesto, se o rapaz tivesse suficiente amor para salvá-lo…” Quanto ao Giardino dei Finzi-Contini é a história de uma família aristocrática destinada a morrer sob a ocupação alemã, como é também a experiência do primeiro amor, um amor que termina reunindo-se à morte e se identificando com ela… Meus romances são terrivelmente difíceis de escrever, pois em certos casos eu nunca experimentei nada de semelhante e tenho que apoiar-me, para criar, exclusivamente na sensibilidade e na imaginação. Lembro-me de que durante o ano em que escrevi Gli Occhiali meu personagem médico tinha uma tal realidade, uma tal consistência que quando eu começava a dirigir o carro, eu o sentia ao meu lado, perto de mim. Tornara-se uma obsessão espantosa… Além do que, escrevo muito devagar. Escrevo parágrafos minúsculos. Sou incapaz de escrever já não digo um capítulo, mas nem mesmo algumas páginas de uma só vez. Retomo sempre o trabalho como um diretor de teatro. Só quando estou contente com um parágrafo pequeno é que inicio o seguinte. Não se deve esquecer que comecei literariamente escrevendo poemas…”
Durante sua passagem pelo Brasil há 2 anos, contemplando com Alberto Moravia e Elsa Morante o aterro da Glória, Bassani nos confiava seu interesse, sua curiosidade pela cultura brasileira: “Que autores novos não produzirá esta terra vigorosa, misteriosa, desconhecida ainda para nós europeus?” Pensava em estabelecer ligações mais regulares com a América Latina, de tornar bilateral a relação cultural entre a Itália e o Brasil, pois apesar de sua fama como escritor e como crítico, Bassani modestamente afirmava que seu maior talento era o de descobrir vocações ainda não reveladas, novos Lempedusas que jaziam em gavetas ou prateleiras empoeiradas de gabinete de trabalho ou bibliotecas escuras. À nossa pergunta, se esse contato indireto com a literatura significava um desapontamento pessoal com os livros, o sensível autor peninsular sacudiu a cabeça melancolicamente: “Há uma unidade entre o que eu escrevo e os valores que eu descubro e revelo ao mundo, pois através de ambas as atividades eu creio exprimir um pensamento político e social, além das ideias pessoais minhas sobre meu país, meu tempo, o amor, os seres humanos…”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Giorgio Bassani e o Conto Moderno Italiano},
booktitle = {Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do
pós-guerra},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {8},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-8/09-giorgio-bassani/00-giorgio-bassani-e-o-conto-moderno-italiano.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Diário de Notícias, 1964/09/6. Aguardando revisão.}
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