Um velho castelo maciço, uma nova flor poética

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1967/11/21. Aguardando revisão.

Em Belém do Pará, onde eu dava um curso de literatura norte-americana para professores da Amazônia – freiras belgas, monges holandeses que plantavam em plena selva uma escola, uma capela, um hospital tosco – a primeira menção do nome: Guimarães Rosa, pelo amigo Benedito Nunes. A união do antigo sobrenome português, com a virilidade do castelo maciço, à evocação da flor poética por excelência, chamou-me a atenção. E logo o relato do Miguilim, aquela recriação mágica do mito da infância perdida, da inocência que resgata a experiência do mundo por meio da dor do conhecimento. Era uma época em que a minha reintegração no Brasil, depois de longa integração na Europa, se fazia mais difícil e eu hesitava em voltar à Alemanha, à Itália, à Espanha ou dar uma contribuição artesanal, sofrida, à cultura brasileira desprovida de incentivos, de diretrizes, de apoio. O encontro com a criação literária de Guimarães Rosa foi decisivo para a voluntária radicação numa terra que ele agora, como os navegadores do século XVI, descobria e revelava ao mundo da sensibilidade e da inteligência: o Brasil. Machado de Assis e Euclides da Cunha tinham sido as expedições de reconhecimento à costa da terra incógnita, mas quem dela tomou posse e nela plantou firme a bandeira conquistadora da sua linguagem foi Guimarães Rosa.

No Itamaraty, atravessando as salas revestidas de mármore e formalidade, o primeiro diálogo, o jovem que se defronta com a sua Esfinge. Mas Guimarães Rosa, cambiante, apresenta como um caleidoscópio mil facetas novas: uma conversa que começou cautelosa, mineiramente prudente, apaga a recordação de que não almoçamos e prolonga-se até às três horas da tarde. O impulso comum que nos impele a trocar ideias, experiências é o Grande Sertão da alma humana pelo qual nos embrenhamos juntos, seguindo as Veredas que nela talharam os grandes místicos.

Da varanda de meu apartamento, no Posto Seis, no Rio, vejo a varanda alta, acastelada, do seu edifício que abarca dois trechos do oceano Atlântico numa colina do Forte de Copacabana. Era a torre de Guimarães Rosa, que eu respeitosamente logo apelido de “bruxo” dedicado à alquimia de transformar a experiência vital em letra que permanece – era a torre da qual Guimarães Rosa descortinava o Rio e, mais além, o imenso Campo Geral de Minas Gerais, símbolo oculto da própria condição humana.

Os 600 metros que separam meu prédio do dele são, porém, uma fronteira indevassável para mim: não me atrevo a brasileiramente “aparecer lá em casa”, inserir-me à força nas suas quatro paredes familiares. O telefone então começa a estabelecer nossa comunicação frequente, noturna quase sempre, um diálogo subterrâneo que se prolonga por duas, três, até quatro horas sem interrupção.

Conversar com Guimarães Rosa – ah, a evocação do companheiro que ele pronunciava firme e decidido como se fôsse uma convocação e não um termo de amizade! – era entrar por um labirinto do qual só ele conhecia as saídas e os meandros. Havia um fluxo contínuo em nossas conversas, como se retomássemos a seguinte sempre do ponto em que deixamos a anterior, como quem liga um rádio e capta uma estação que já estava no ar antes de ser sintonizada. Conversar sobre um fato corriqueiro assumia o imprevisto de uma novela de Kafka que abre para a surpresa e o espanto. Mas uma surpresa e um espanto sem terror, sem angústia, só de fascínio pela mente que formulava tais pensamentos e os expressava de forma inesquecível pela precisão dos termos, pela elegância e graça da frase, pelo inesperado da adjetivação, pela sintaxe pessoal, pela utilização dos verbos regionais ou arcaicos, engastados no período como mosaicos de Ravenna evocando uma imagem perene do homem no mundo.

Ele sabia estórias absolutamente incomuns que hoje a parapsicologia tenta decifrar com a mesma leveza de sondagem de uma sonda de prospecção petrolífera – como se o reino da alma humana pudesse ser reduzido à psique douta dos que farejaram Freud mas não souberam de onde vinha a trilha. Falava com a mesma fluência e a mesma convicção persuasiva do engagement social do escritor – um empenho que é, por definição, intrínseca, pois também para ele o humano era, automaticamente, o social. Aconselhava-me sempre a não entrar em debates estéreis com os novos bárbaros que encarceram escritores que discordam de seus ultimatos político-econômicos.

Exortava-me a não esmorecer diante da fragilidade das relações humanas e a colocar na criação literária – crítica ou ficcional – o melhor de mim mesmo: “aí é que está o miolo, aí é que está o que fica”.

Por isso recusava-se a dar entrevistas.

De que me serve, perguntava com realismo ibérico, saber se o grande escritor Fulano sofre de disenteria ou se sua mulher fugiu com outro?

Tudo isso é bagaço, joga-se fora – afirmava.

Incapaz de uma crítica venenosa, altivo na sua solidão e na sua modesta consciência da sua própria grandeza, Guimarães Rosa tinha que disciplinar a sua bondade espontânea como domava os cavalos bravos que selava em Cordisburgo, com o surrado caderninho de notas na algibeira de couro, pronto a escolher expressões saborosas do povo a qualquer momento. Atento, silencioso contemplador ativo da vida que palpitava a seu redor, ele retratava sem panfletarismos deformantes de uma doutrina política simplista o próprio povo brasileiro nos mágicos e profundos espelhos que se chamam Corpo de Baile, Terceiras Estórias, Tutaméia, Sagarana.

Às vezes, de manhã cedo, ele passava em frente à minha casa, esmeradamente limpo, trajado com discreção, só se concedendo a fantasia da borboleta que adejava em torno ao seu colarinho sempre coerentemente branco.

Tomava – no tempo que havia ainda – um democrático “lotação” daqueles que ziguezagueavam como se o chaffeur tivesse descoberto o LSD muito antes dos hippies dos Estados Unidos e que depois de vinte minutos de curvas beirando o pânico e a loucura o depositava, incólume, à porta do edifício rosado do Itamaraty. Lá ele assumia sua função burocrática, exterior, seu status civil: Embaixador, Chefe do Departamento de Fronteiras, nomeação demasiado providencial para que não fosse obra de sua bruxaria pessoal, conseguindo aquele posto que raramente o fazia lidar com marcos limítrofes perdidos entre o Acre a Bolívia, a Venezuela e o Amapá, nas selvas equatoriais da Amazônia. Ou era simbólico também que o habitante da fronteira entre o físico e o metafísico ocupasse aquele cargo, como intermediário entre as duas realidades que ele, melhor do que ninguém, sabiam que se sobrepunham uma à outra como a alma encaixando-se no corpo?

Haveria mais imagens a evocar - houvesse tempo e espaço, as duas Parcas que tecem e cortam as limitações humanas - mas é tarde. E Guimarães Rosa não morreu. Para ele não há epitáfios nem lápides mortuárias, porque a sua essência, como toda a essência do sofrimento, da beleza, do conhecimento humano confiado às palavras, é feita toda de futuro e de presente perpétuos. Pois ele somou, antecedeu e elaborou a grandeza literária de um povo jovem e de uma Nação, como ele, lançada já no presente para um futuro perene.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Um velho castelo maciço, uma nova flor poética .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.