O fim da jornada

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 1970/11/04. Aguardando revisão.

Na fazenda da familia tradicional em Barretos, Estado de São Paulo, o menino esquivava-se à brincadeira favorita de seus companheiros da idade, laçar bezerros, que dava aos vitoriosos honra de marcá-los com suas iniciais. Os vencedores desde cedo não o interessaram: preferia a companhia dos carroceiros que jogavam baralho nas horas de folga, os livros infantis, os casamentos celebrados entre os colonos na vila mais próxima, os noivos envoltos em nuvens de poeira, na charrete nupcial caipira. A grande crise econômica de 1929 deixou aquele garoto arredio, de sete anos, aturdido diante dos gritos da mãe e da avó na casa-grande, que tentavam desarmar o avô em luta de espingarda em riste contra um inimigo invisível: a perda de sua fazenda de 30.000 alqueires. Comparado ao contista e dramaturgo russo Tchékov, ao retratar a decadência da aristocracia rural, ou ao americano Tennessee Williams, ao desenhar personagens femininas marcantes, Jorge Andrade, 48 anos, encerrou na semana passada seu esplêndido painel da sociedade brasileira com a publicação de suas dez peças. Com a inclusão de duas inéditas, As Confrarias e O Sumidouro, o grande dramaturgo brasileiro da década de 60 completa o mural iniciado com O Telescópio e logo seguido por A Mortória, Veredas da Salvação, A Escada e a comédia Os Ossos do Barão, entre outras peças encenadas com sucesso desigual. Essa atividade criadora ao longo dos últimos vinte anos abrange tôda a sociedade formadora da população brasileira, em sua perspectiva paulista. São dezenas de personagens que representam o povo (escravos índios e escravos africanos da era colonial), a aristocracia urbana (os "quatrocentões" da classe nobiliárquica paulista ista do Império), a aristocracia rural (os fazendeiros) até os imigrantes (como o Egisto de Os Ossos do Barão) e o bandeirante Fernão Dias (em O Sumidouro) e os artistas mestiços e negros escravos de As Confrarias, entre outros.

O título, Marta, a Arvore e o Relógio, simboliza os motivos centrais dessa variada dramaturgia, a mais pujante surgida no Brasil depois das peças de Nelson Rodrigues na década de 40. Marta, a personagem inquietante de As Confrarias, é a agente de transformações sociais, uma espécie de Antígona que quer enterrar seu marido insepulto e assassinado por se ter rebelado contra a cobrança de impostos em Ouro Preto, antes da Inconfidência Mineira. Ela é o símbolo da mulher brasileira, que Jorge Andrade considera um elemento dinâmico em nossa sociedade. Ao contrário da visão corriqueira da mulher como elemento conservador, o dramaturgo paulista acha que a mulher, por ter estado trancada três séculos em casas coloniais, conservou sua força e acelerou a mudança das estruturas sociais do Brasil agrário para a fase industrial iniciada na década de 30. Em suas peças, as mulheres partem sempre de uma situação real, que reconhecem objetivamente, adaptando-se a ela e agindo praticamente para transformá-la. Lucília, a filha do fazendeiro Joaquim, arruinado pela crise do café na peça A Moratória, é a única que toma providências imediatas para manter financeiramente os pais e o irmão empobrecidos: costura para fora e renuncia ao casamento para cuidar dos pais velhos e embalados pela ilusão da "moratória, o prazo que o governo daria para os fazendeiros pagarem suas dívidas aos bancos e ao Estado.

Maria Clara, em A Escada, é quem impele os irmãos a internarem os pais escleróticos e de ares aristocratas intolerantes num instituto para pacientes idosos. O homem é frequentemente o elemento conformista, sacudido de sua posição patriarcal pelo vigor dos imigrantes e da expulsão das áreas de mando político-econômico do Brasil a partir da revolução de Vargas, em 1930. Frequentemente, o homem é o sonhador, o artista como Vicente, personagem autobiográfico de Rasto Atrás, que vê como sua tarefa única “procurar... procurar... que mais poderia ter feito?”; a tarefa é procurar esmeraldas como Fernão Dias em O Sumidouro ou procurar interpretar a condição humana através das palavras como o escritor Vicente ou o ator José.

O relógio é o símbolo proustiano do tempo: o tempo perdido do passado, sua mutação no presente e sua redescoberta através da evocação literária. O relógio é o símbolo da passagem do tempo, da mutação de uma sociedade rural para uma metrópole urbana, do envelhecimento do passado e do avanço irreversível do homem rumo à sua liberdade e à sua realização. A árvore significa crescimento, renovação, florescimento: é a terra, o trabalho do homem, a natureza generosa. Mas é também a tradição, as raízes que tornam imóvel quem se prende aos mortos debaixo da terra: por isso, vários personagens são enforcados na árvore, são vencidos pela tradição, como os fazendeiros que não evoluíram junto com a sociedade industrial e com a democratização crescente da política e da economia brasileiras. Jorge Andrade vai mais longe ainda: pretende desmitificar a própria aristocracia paulista, com seus títulos nobiliárquicos comprados e sem base em genealogias européias. "Os bandeirantes não alargaram fronteiras: só aprisionaram indios, apossaram-se do ouro, instalaram-se numa posição de domínio." O povo, "palavra tão gasta, mas ainda válida", é que ficou alienado da História, escrita pelas classes dominantes. Na realidade, o povo, sem nenhuma demagogia panfletária, é que forjou a riqueza do país, é o sustentáculo e a mola humilde do progresso e da prosperidade. Por isso, nessa criação teatral que retrata a aristocracia rural e a classe média urbana, o povo é o protagonista da tragédia mais comovente desse painel de dez textos que percorrem vários séculos e vão do drama à comédia. Veredas da Salvação, uma situação semelhante à revolta de Canudos que inspirou Os Sertões de Euclides da Cunha, surgiu da imprensa diária, de notícias de jornais que relatavam choques sangrentos entre miseráveis agregados de uma fazenda no interior de Minas e a polícia. Um grupo de trabalhadores paupérrimos abandona o catolicismo para converter-se à fé protestante adventista, que prega práticas austeras e a volta (o Advento) do Cristo para nova redenção dos pecadores. Joaquim, traumatizado pela miséria, fanatiza-se pela nova fé a ponto de exigir o sacrifício de crianças e de fetos - "frutos de Satanás". Apregoa que é o Cristo de volta à terra, pronto para levar "seu povo para longe dos sofrimentos terestres, voando para o céu com ele. Ana, que não se deixara envolver pela atmosfera alucinante, é quem chama a polícia, que vem massacrar a bala os "hereges sacrificadores de criancinhas". Revivendo a tragédia religiosa do Gólgota, os camponeses de Veredas da Salvação são tão vítimas quanto seus senhores, os grandes latifundiários, de uma alienação suicida: o fanatismo daquele misticismo doentio é tão escapista quanto prender-se a um passado que não existe mais, uns "tempos bons" que na realidade foram a era da opressão, dos privilégios, das injustiças sociais.

Com mais de dez prêmios por suas peças, Jorge Andrade afastou-se, temporariamente, do teatro, enquanto Veredas da Salvação fica dois anos em cartaz como o maior sucesso recente em Varsóvia, A Moratória é encenada pelo Grupo Universitário de Cleveland, nos Estados Unidos, e em Lisboa A Escada e A Senhora na Boca do Lixo consagram-se como "as mais importantes contribuições brasileiras ao teatro encenado em Portugal" (Diário de Notícias). Ex-professor de dramaturgia e teatro no ciclo colegial de cursos médios na capital paulista, ex-aluno da Faculdade de Direito do largo de São Francisco paulistano, Jorge Andrade é jornalista da revista Realidade há dois anos e separa nitidamente sua atividade profissional de sua criação artística. "O jornalismo também é para mim uma forma de comunicar-me, de focalizar e espelhar a comunidade em que vivo no Brasil atual." Enquanto prepara um romance sobre esse Brasil contemporâneo, ele não exclui a possibilidade de voltar ao teatro mais tarde. Por ora, acha que há uma inflação de diretores-vedetes que esquecem o texto em prol de malabarismos cênicos narcisistas. E depois há menos talento do que economia de gastos em algumas montagens de peças com apenas dois personagens, todas "filhas diretas do Zoo Story de Albee, matriz de infinitas tentativas teatrais de autores novos brasileiros da fase mais recente".

Só as interrelações íntimas dos personagens dessas peças darão uma visão global desse painel único na nossa dramaturgia, com a reunião desses dez textos num livro só. Os espetáculos das peças levadas fragmentariamente não permitiam reconhecer sua interdependência e a grandeza mural desse projeto ambicioso. Além do que, Jorge Andrade teve que lutar com o despreparo cultural diretores interessados em autopromover-se mais do que em revelar a visão da realidade do autor.

Combatido pela direita oligárquica que o acusou de "agitar a questão da reforma agrária com Veredas da Salvação, pela esquerda dogmática "por não se filiar a uma ação partidária obediente”, Jorge Andrade constata que sua dramaturgia, nascida da solidão, confirma-se na solidão da incompreensão do artista e do intelectual num país do nosso contexto cultural. "Um país mais voltado para os valores materiais imediatos e no qual a cultura é um bem secundário quando não um mal inoportuno. É outro círculo que se fecha em torno a ele: começou a escrever depois de assistir à representação da peça O Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, interpretada por Cacilda Becker, em 1951. "Senti que a peça, o espetáculo, não sei o que, respondia a uma indagação minha, a uma angústia minha." Influenciado pelo existencialismo cristão do pensador francês Emmanuel Mounier e do jesuíta Teilhard de Chardin, Jorge Andrade acha que o teatro, as palavras - os meios de que dispõe para participar de uma realidade - integram-se numa visão global do Brasil e da nossa época. "Incompreendido ou não, o meu trabalho é a minha crença e a minha adesão a uma ética que me prende ao ser humano e principalmente à parte anônima, não incluída na História, os vencidos por uma avidez econômica avassaladora. A solidão e a incompreensão retratam a minha adesão, que é muito mais profunda, mais duradoura e mais ampla: a adesão ao Homem, que pode ser no futuro não a vítima que tem sido, mas o agente da sua História."

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O fim da jornada .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.