Cavaleiro da blasfêmia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1989/12/30. Aguardando revisão.

Na literatura moderna, parece-me, na Europa apenas três ou quatro escritores se definem unicamente pela palavra. Para Kafka ela evoca um mundo burocrático, massificado, o inconsciente cruel e arbitrário. Virginia Woolf tenta através das palavras o que há por detrás delas: além da luminescência do termo, do esplendor estético, o que hả? Proust recaptura, com a palavra concebida como resgate artístico, o tempo; o passado se funde com a memória sempre rediviva e readquire sua vibração de presente. Beckett recupera o valor sacral da palavra. Através da humilhação mais abjecta desse ente impossível, mesquinho, estúpido, vulgar, canalha, boçal, egoísta, inútil - o ser humano - ele, por mais que o negue racional e explicitamente, se curva diante do incognoscível, como o menino que se ajoelha durante a primeira comunhão. Beckett desafia as classificações simplistas: era um sádico? um niilista? apenas um autor incompreensível? um dramaturgo muito engraçado, que faz pouco da miséria de dois mendigos idiotas?

Para talvez nos aproximarmos do círculo quase inteiramente fechado sobre si mesmo que é Samuel Beckett temos que dar um salto mortal: pular todos os seus paradoxos, armadilhas sutis e eficientes. E fazermos um desvio longuíssimo que nos leva... a Dante e sua Divina Comédia, em plena Idade Média italiana. O autor irlandês radicado na França “Prefiro a França em plena guerra do que a Irlanda em paz” é um de seus conhecidos momentos de decisão, frequentemente e erroneamente tomados como um bon mot) cedo se impressiona com os grandes pensadores e com o gênio italiano: Dante... Bruno... Vico... Joyce é uma reflexão (ele detestava palavras pedantes como “um ensaio”) sobre o universo joyceano, símbolo do purgatório, visto ainda sob a perspectiva de Giordano Bruno. Preocupar-se com Deus, blasfemar constantemente contra Ele será uma forma de religiosidade? A cada passo os personagens dos contos, dos poemas, das peças de teatro becktianas mencionam Deus: Moran admite que “aproveitei estar sozinho, tendo apenas Deus por testemunha, para me masturbar”. Nos Textos para Nada Jesus é definido como “o imbecil divino”. Em Como É, Abraão, se encontrado, saberá onde enfiar o dedinho acusador do personagem que escarnece dele. Várias vezes já se citou o texto (de Watt ou Molloy) em que o romancista apresenta este problema teológico blasfemo-cômico-sórdido:

1) Um ratinho, por exemplo, devora uma hóstia consagrada. Daí:

2) Ele ingeriu o Corpo Santificado de Cristo, simbolizado na hóstia abençoada?

3) Se não o comeu, o que aconteceu com o Corpo do Senhor nela contido?

4) No caso do rato ter engolido o Corpo de Deus, o que se deve fazer com o rato?

No romance Molloy, Moran se preocupa com perguntas atinentes à religião como: “Quanto tempo o anticristo vai nos deixar esperando por ele ainda? Até quando?”; “É de importância decisiva saber-se com exatidão com qual das duas mãos devemos comichar o ânus?”; “Existe verdade na afirmativa de que São Roch se recusava a tocar nas tetas maternas às quartas e sextas-feiras?”, “Que merda fazia Deus antes de criar o Universo?”, (frase que tem outras interpretações porque se pode dizer também “Que f... de troço Deus estava cozinhando antes de...”, pois é comum em Beckett a aliança entre vulgaridade e gíria’ plurissemântica); ou, a acachapante pergunta: “E que tal dizer a missa dos mortos para os vivos, hein?”

O que é Deus? O inexistente? O relojoeiro que dá corda à Sua Criação? O que acalma o sofrimento do homem? An eternal search (Uma eterna busca?) O que ouve e testemunha a voz solitária do ser humano?

O homem, perdido, e desprezando “esses porcalhões” que surgem como “pastores de almas” ou “sacerdotes com catecismos”, erra no meio da bruma. Em Krapp’s Last Tape (recordando que em inglês vulgar a grafia crap significa tanto merda, bosta quanto non-sense), durante alguns minutos um velho paupérrimo só ouve sua própria voz, recordando o passado. Happy Days enterra os protagonistas mais e mais na areia, à medida que a peça se desenrola. Os mendigos falam de absolutas banalidades, esperando por Godot, que obviamente não vem nunca. Malone/Malloy percorre pântanos com lama e vermes até o pescoço como os condenados do Inferno de Dante. O amor? Uma prostituta arquibanal também, de nome incerto, Loulou, Lolo, Lili, ao participar a seu amante que está grávida o vê desaparecer num abrir e fechar de olhos. Em More Pricks than Kicks há pornografias só decifráveis em inglês, onde prick é o nome vulgar do órgão genital masculino.

O que torna a leitura de Beckett mais difícil ainda é que ela, além de ser críptica, voluntariamente críptica, é recheada de erudição como farpas agudas e defensivas. Em More Pricks than Kicks, uma patinação no gelo leva a uma citação shakespeareana, do Hamlet, fora trechos da Bíblia, de Dante e trechos polivalentes, que tanto podem ser interpretados desta ou daquela outra maneira, já que é sabido que a língua inglesa tem uma riquíssima pluralidade de sentidos para um grande número de palavras. Daí a virtual impossibilidade de se traduzir tanto o Finnegan’s Wake de Joyce quanto determinadas obras de Beckett, abarrotadas de trocadilhos só captados no original inglês.

Notoriamente, Beckett é, em suas palavras, “pouco dotado para a filosofia”, conclusão a que chegou depois de ler Schopenhauer e Kant. A Alemanha tampouco lhe desperta o mínimo interesse. Seria difícil encontrar, como ele, um escritor que 1) fosse incapaz de falar mal de alguém; 2º) abominasse as “rodinhas” literárias e a autopromoção” e 2) que, sinceramente, vivesse de maneira extremamente modesta, dizendo que escrevia “a fim de se tornar cada dia mais pobre”. A solidão voluntária se somava, nele, a uma afabilidade surpreendente. Adorava Joyce, fez amigos em Paris, traduziu para o inglês Benjamin Péret, Paul Éluard, aprendeu o francês a ponto de o dominar quase como Nabokov se assenhoreou do idioma inglês, uma vez transplantado definitivamente para os Estados Unidos.

Peter Brook, que com Bob Wilson forma atualmente o binômio de excepcionais diretores de teatro estrangeiros, definiu com uma precisão que me parece impressionante o que esperamos quando vamos ver uma peça de Beckett: ah, mas ao cabo de duas horas certamente ele nos deixará sair do teatro pelo com um pouco, um pouco só de esperança! Qual o que! Nem catarse! No plano humano - já ficou claro que o plano humano para o autor irlandês-francês e uma mistura de Purgatório e de Inferno dantescos e o plano divino, por mais enxovalhado de blasfêmias inteligentíssimas, é sempre o da insondável “eterna busca - o palco de Beckett, diz Brooks, é apavorante, misturado com cenas que nos forçam a rir por sua comicidade trágica, grotesca. Ele vê a nós colocados no palco como verdadeiros personagens de Beckett: pois se estamos submetidos a leis férreas que determinam nosso sofrimento e que são leis que nós mesmos aceitamos que nos dominem!

Nada seria mais imbecil do que querer transformar seus romances e peças em um surrado libelo comunista, quem sabe escrito por Mao e Fidel a quatro mãos e melhorado por Brecht?... Não é apenas a miséria física, a fome, a injustiça social que afligem Beckett: é a inanição de Deus, de oportunidades perdidas, é o superávit de egoísmo e banalidade incoercíveis humanos. Talvez o social seja o efeito, mas nunca a causa em si destas deformações econômicas e sociais. Pensar que os seus mendigos “se curam” com um asilo ou um bom emprego, uma casa, boas refeições, um teto sobre a cabeça, dinheiro no bolso é perguntar: e depois da pança cheia, o que deseja o cérebro? Liberdade? Democracia? O consumismo desvairado? Todos insuficientes, parece deixar claro Samuel Beckett: a condição humana, em si, não tem salvação. Tudo, enquanto ela durar, é, portanto, indiferente.

Se se quisesse escrever um epílogo ao teatro que se chama de absurdo e que, no entanto, é palpavelmente real, concreto, de Beckett, bastaria que esperássemos dele a noção, totalmente ilusória, de “progresso”. Eliminação de doenças? da pobreza? das guerras? Não se tocou ainda nem de longe a pedra angular: a transcendência. Giramos como as minhocas no vaso “sem Sol, sem terra nada que torna o mesmo instante sempre em todos os lugares”. Vivemos nesse círculo que é inúmeras vezes citado como procissão rumo ao ponto de partida; há movimento, mas não “avanço”, “progresso”: somos bilhões e rodamos em círculos “a nos ignorar uns aos outros”: ser humano não é ser iniquo? insignificante? Da mesma forma em Malone/Malloy morre se afirma, nitidamente, que

“Viver é errar sozinho vivo no fundo de um instante sem limites onde a luz não varia”.

Somos todos, se for plausível esta interpretação, integrantes daquela chusma lastimável, os Negligentes, que Dante e Virgílio divisam à porta do Purgatório. Condoído de um deles, Belacqua, (que Beckett usará em várias de suas criações, como símbolo constante) Dante o interroga a respeito de seu infortúnio e Belacqua responde: “Irmão, de pouco me adianta subir mais. O Anjo que guarda a Porta dos martírios do Purgatório me impediria a entrada”. E alude não só ao tempo imensurável que lhe toca esperar como à ajuda que as orações podem significar para a sua admissão no Purgatório.

Como seu compatriota Yeats, o grande poeta irlandês, Beckett talvez acredite que o ser humano aspira à stasis grega, à imobilidade, teoria já formulada anteriormente por Aristóteles. Como explica aliás o agudo exegeta francês de Beckett, Ludovic Janvier, em Beckett par lui-même:

Sedento et quiescendo anima effecitur sapiens”, ou seja: é permanecendo sentado em repouso que se dá sabedoria à alma.

Um dos míseros protagonistas de Beckett, Murphy, um Belacqua irlandês e contemporâneo nosso, julga ter encontrado no “não fazer nada, nada” a melhor maneira de se encontrar ou de não se perder demais. De fato, é “sentado, nu, na cadeira de balanço que Murphy medita sobre o nada de novo debaixo do Sol. É assim abandonado que ele se interpreta, porque todo movimento neste mundo do espírito exigia no mundo do corpo um estado de repouso”. Clarissimamente: “À medida que morria na qualidade de corpo ele se sentia ressurgir na qualidade de espírito, livre para se movimentar entre os tesouros do seu espírito”. A contemplação nos isola dos demais que, mesmo que não o saibam, estão imersos na lama como nós, quando não rastejam em meio a uma cova cheia de pó e vermes ou se deixam arrastar pela maré ou se regozijam com a decomposição de seus corpos.

Não é possível ocultar, porém, neste aparente oceano de negatividade, de niilismo de pessimismo, a disfarçada fúria de amar o outro, que Beckett ironiza ao ordenar: “Amai-vos uns aos outros! Lambei-vos uns aos outros!” A alteridade é imprescindível: não que ela possa abolir o solilóquio e a solidão, mas – quem sabe? – talvez o próximo, o outro, desperte este quantum indefinível quanto à oração: o amor, que, como a prece, nos liberta do tempo, o trajeto da aranha paciente dos ponteiros, que tece nos relógios a teia que nos envolve e estrangula até a morte.

Em Mercier e Camier, Beckett como que define outra ver os contornos da condição humana, em um de seus trechos mais práticos e belos, dentre tantos que deixou:

“Os camponeses vagueiam lentos pelas imensas extensões vazias. Pergunta-se como eles poderão voltar para casa antes da noite, à fazenda que não se vê, à aldeia que não se vê. Não há mais tempo suficiente e, no entanto, Deus sabe se há. Mesmo as flores têm alguma coisa de fechado e uma espécie de loucura se apodera das asas. O gavião ataca mais cedo, os corvos e as gralhas abandonam a labor diário e se dirigem para o local de reunião, onde só grasnarão e brigarão até a noite. Neste momento se agitam com a vontade de sair, mas é tarde demais. É um fato, a jornada acabou antes de acabar e os homens caem de cansaço antes da hora de repouso. As últimas horas do dia, então, se tornam febris, corre-se à direita e à esquerda, e nada se faz. Deixa-se passar a hora do perigo porque não há perigo e logo depois se está desarmado. As pessoas caminham na rua cercadas de catástrofes. É pouco para que valha a pena começar, muito para que não se comece de qualquer mantura. Aí está o tempo deles, a gaiola das horas.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Cavaleiro da blasfêmia .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.