As múltiplas seduções de Hilda Hilst: entrevista

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977/04/18. Aguardando revisão.

“A transformação não foi repentina como poderia parecer: a decisão de que não podia mais perder tempo é que foi. Imagine, houve até quem me tachasse de snob, de sacerdotiza, de monja, de bruxa, tudo isso só porque eu quero pensar no que é real e urgente! Bem, não importa o que digam os que não compreendem. O importante é que aprendi a importância decisiva que cada um de nós tem de meditar profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras. Quero dizer: devemos pensar sobre nós mesmos, tentarmos tolerar uns aos outros melhor. Pois só através de um relacionamento melhor com o mundo, com o próximo e de uma tolerância maior com as nossas próprias insuficiências é que podemos lidar melhor com o mundo, entende? Por que, na verdade, o que eu tinha ao redor de mim com a vida que eu levava? Alguns poderiam chamar de perplexidade ou de incapacidade de entender.

Mas me impressionou deisivamente o fato aterrador: o de que a Natureza não leva em conta absolutamente o ser humano. Quando nascemos já há de antemão todo um jogo armado pela Natureza, que não nos dá nenhuma opção, como se Deus fosse sádico: só deparamos, na natureza, com fatos consumados nos quais o homem entra como um intruso indesejado talvez. Como exemplo do terror que preexiste na natureza: o crocodilo é um animal forte, temível, feroz. Acontece que ele dorme de boca aberta. E enquanto ele dorme tranquilamente diante do Nilo, digamos, o seu inimigo mortal, o rato da Índia, minúsculo e voraz, entra pelas fauces do crocodilo e lhe come as entranhas vivas, escavando depois um furo pela barriga do animal vivo, para sair. De forma que sem qualquer possibilidade de defesa, o crocodilo, dilacerado por dentro, começa a morrer de uma forma monstruosa. Eu conclui então que essa voracidade, essa hostilidade permanente entre as espécies se torna, se possível, mais acentuada no homem. É como se no código genético ou na estrutura da alma do homem estivesse embutida essa célula de ódios múltiplos, inextirpáveis, absurdos. Por mais que eu quisesse repensar tudo, fica sempre isso, o imutável: o terrível da aranha devorando a borboleta, nós nos alimentando um dos outros – que otimismo lúcido eu podia ter diante dessa voracidade diária? E hoje, então, em que vemos essa voracidade se aliar à crueldade gratuita, à violência de provos contra povos, raças contra raças, sistemas contra sistemas, presidindo isso essa coisa sinistra que eu chamo a Política? Arsenais atômicos, biológicos, psicológicos de cada “potência” nacional ou ideológica armazenando munições para destruir quem quer que for diferente, pela cor da pele, pela preferência política, religiosa, erótica, entende? Isso é imemorial, em qualquer período da História sempre predominou, são ódios, sabe-se lá infinitos?

Acho a Política um elemento descolado do humano: mas os políticos, naquilo que eu chamo de “pedantocracia”, insistem, na sua boçalidade, em conduzir o mundo cada vez mais rapidamente para o caos, a destruição, a cegueira. Então eu penso: com essa vaidade suicida do político que marcha impávido para a catástrofe, levando a humanidade atrás, será que tem sentido escrever ainda no mundo atual? Escrever não será, como o ato político, tentar fazer brilhar aquilo que não deve nem pode jamais brilhar?; escrever será um ato de, digamos, caridade, para consolar o ser humano de ser o que é?”

“Todos os exemplos provam que não. Você veja: textos e homens magníficos, fantásticos, como os Vedas, Krishna, Jesus – nenhum deles conseguiu mudar a expressão do rosto do homem. A Redenção também, não é? Cristo veio para nos redimir e eu me pergunto então: por que continuam tantos Lázaros insepultos? E se fosse verdade, o que nos dizem da Redenção, o rosto dos homens não seria mais o mesmo: visceralmente nós mudaríamos. É como a anedota que o Paulo Mendes Campos me contou. Um ser perfeito, lindíssimo, civilizadíssimo, desceu de um disco voador e o terráqueo, embasbacado, perguntou: ah, vocês evoluíram assim foi depois do caos, é? É, respondeu o outro, surgiu lá no nosso planeta um homem chamado Jesus, que pregava o amor ao próximo e até aos inimigos. O habitante da Terra observou: é, aqui também, e nós o crucificamos. O extra-terrestre achou inacreditável: cru-ci-fi-ca-ram?! Pois no planeta dele tinham seguido Jesus e por isso tinham se tornado perfeitos todos os habitantes de lá…”

“Mas, Leo, se esse Homem, Filho de Deus, apareceu para redimir o homem, então nós todos já estaríamos salvos. E você, com o terrorismo, a crueldade chacinando milhões de pessoas em quase todos os países, ou todos, você vê alguma”redenção”, alguma mudança no coração do homem com relação ao seu semelhante?”

“Mas, não há evolução nem gradual aqui na Terra! Nascem sempre seres superiores, é verdade, como o Dr. Albert Schweitzer, falando da reverência pela vida, Martin Luther King, Gandhi e riem deles, quando não os matam, como fizeram com Cristo! As pessoas que dizem as coisas importantes e enfocam as questões decisivas não são ouvidas ou são objeto de chacota, no máximo de pena, serão loucos, ou o que?”

“Acho que não. Sou completamente pessimista. Sinto que nós estamos naquela região de trevas, no vértice supremo das trevas, da maldade, da ignorância que o Hinduísmo chama de kaliuga. Acho que nos estamos aproximando celeremente de um desfecho apavorante, sem retorno.”

“Para mim não se trata disso: creio que estamos nos aproximadno de uma desumanização do homem não redimido por Cristo (Cristo a quem, aliás, admiro profundamente), a tal ponto que o próprio desígnio divino não previu ou não quer acreditar nessa monstruosidade em que se transformou a humanidade. Toda a matéria, que segregou outra matéria, deseja a morte, a destruição. É preciso portanto rasgar tudo, partir do princípio, tudo de novo. Riscar todo o esboço do ser humano que se teve até agora, esquecer tudo e recomeçar desde o princípio.”

“Eu acho que não. Enquanto o homem não recuperar a sua alma, não. É como eu digo nos versos de um dos meus poemas, do meu livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (procura a página e lê em voz alta):

Que te devolvam a alma,

Homem do nosso tempo,

Pede isso a Deus

Ou às coisas em que acreditas…

Desmedida.

Uiva se quiseres,

Ao teu próprio ventre

Se é ele quem comanda

A tua vida, não importa,

Pede à mulher

Àquela que foi noiva

À que se fez amiga,

Abre a tua boca, ulula

Pede à chuva

Ruge

Como se tivesse no peito

Uma enorme ferida

Escancara a tua boca

Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.”

“Aí, quando eu penso nisso tudo eu acho que pode haver uma débil esperança. Há muitas pessoas hoje pesquisando esses fenômenos no mundo: o Instituto Max Planck, na Alemanha, é um deles. Outro sinal alentador é o livro Biologia do Espírito de Edmund Sinnott, em que ele argumenta que o biólogo pode reivindicar para a sua área de especialização o espírito como produto da matéria viva. Seria anticientífico, ele diz com grande convicção e de forma irrespondível, não explorar, a priori, por preconceito, as possibilidades que porventura possam existir de encarar o espírito como objeto de pesquisas racionais.”

“Eu tomei conhecimento das experiências pioneiras feitas pelo pintor sueco Friedrich Jurgensson. Foi uma coisa que aconteceu acidentalmente. Ele estava passando um fim de semana numa propriadade que ele tem na localidade de Moinho. Saiu com o gravador ligado com o propósito de gravar a voz dos pássaros no bosque, naquela região isolada, erma mesmo, onde ele durante o sábado e o domingo pintava e lia metódica e constantemnte textos do Budismo, do Hinduísmo etc. Foi com a primeira gravação que ele notou que entre o canto de um pássaro e outro apareceram, nos intervalos, vozes falando nitidamente, em alemão, sueco e outras línguas. Jurgensson imaginou que a fita estivesse estragada, trocou por outra, nova. Mas sempre apareciam novas vozes de amigos dele já mortos que passaram a lhe dizer coisas que só ele e aqueles mortos sabiam. Começaram a dar-lhe mensagens, como por exemplo a de que a morte não existe, não precisamos ter medo dela etc. Cada vez mais interessado, ele continuou as experiências. As vozes chegaram a sugerir que ele acoplasse o gravador no rádio e aí, através do rádio, as vozes, quem sabe, podiam usar a energia das ondas hertzianas e se comunicarem melhor com ele.

Hoje em dia, cerca de mil pesquisadores na Europa, nos Estados Unidos, sentem-se curiosíssimos e/ou fascinados por essas pesquisas. Eu também, na minha fazenda em Campinas. Convidei meu amigo, o grande físico César Lattes, para ouvir minhas gravações das vozes dos mortos ou desconhecidos e ele acha que são fenômenos inexplicáveis: “A física, Hilda, ainda está na infância” ele diz. Outro físico igualmente íntegro e de renome mundial, meu amigo Mário Schenberg, que se interessa vivamente por esses fenômenos, embora não tenha ouvido ainda o material que eu recolhi, acha que a física acadêmica é que se nega, de antemão, a examinar o que está fora da sua área. É como diz César Lattes: “será preciso ouvir muitas vezes a fita, para poder analisá-las melhor”.”

“Se der tempo, não é, Leo? Se tudo não explodir antes de podermos esclarecer a realidade psíquica das coisas. Mas eu já vi pessoas, não tão eminentes como o Schenberg e o Lattes, rejeitarem a ideia com sarcasmo, zombando de mim, me chamando de alienada, de louca, de bruxa, um horror! Niinguém quer mudar o conceito que tem de morte, partem para uma agressividade sarcástica terrível para comigo! Me chamaram até de megalomaníaca como é que eu posso me engrandecer com isso? Pois se isso até me toma tempo que eu poderia empregar para a minha leitura ou escrevendo. Mesmo assim eu insisto contra esse muro aparentemente impenetrável de descrédito e caçoada. Por que tanta teimosia? Porque eu acho que a morte é a única situação transcendente do homem, a problemática mais importante do homem – que exibicionismo eu poderia exibir e que eu ganharia divulgando isso sem visar lucro nem fama?! Não é inacreditável o que as pessoas podem atribuir a você?!”

“Houve uma esperança maior, a partir desse momento, porque há 20 anos que eu leio, medito, penso sobre o Homem, a Morte, o Ódio etc. Daí eu achei, não sei, acho que a minha criação literária e as minhas fitas coincidem num ponto: na urgência de comunicar ao outro:”Você é imortal”, “não receie a morte, em sua imortalidade cada um de nós preservará a sua individualidade, não é aquela dissolução do eu no Nirvana, como prega o Budismo”. De modo que quero chamar a atenção, por meio da literatura e das minhas experiências psíquicas, para o inadiável, para a premência de se reproporem as tarefas primoritárias do homem. Há os que contradizem com veemência: “Não é preciso mudar a vida do homem aqui e agora, mas a minha resposta é a de que uma coisa não anula a outra e, sobretudo, deve-se renunciar à violência, ao terrorismo, aos ódios desumanizadores das guerras. Grandes sábios da Física, Heilbronner, Teller, Heisenberg, infinitamente mais cultos do que eu, não sabem mais definir com precisão o que é antimatéria, matéria, neurinos, como leigos então podem ter a presunção de ostentarem uma visão tão estreita das coisas? Tudo pode caminhar ao lado da luta pela elimminação da fome, pela conquista da justiça social, da fraternidade, da liberdade, compreende? Agora, eu gostaria muito de ter o apoio da Unicamp (Universidade de Campinas) para fazer minhas experiências com as gravações no interior de uma gaiola de Faraday, porque ela não permite a passagem de ondas hertzianas, por exemplo.

Bastaria, na pior das hipóteses, que os materialistas mais ferrenhos, depois de terem provado que tudo não passaa de projeções do próprio inconsciente, se capacitassem das perspectivas imensas que se abrem para o homem se ele adquirir a noção da sua potencialidade não utilizada ainda de falar línguas que não aprendeu, de referir-se a fatos que não viveu ou sua memória não registrou, você já pensou nisso? Não é só o medo da morte, a perda da individualidade que me apavora, é pensar que tudo desemboca no Nada, que a vida não faz sentido, isso sim que seria, se eu acreditasse nisso, a Morte total, eu acho. O que, evidentemente, por outro lado, não me torna automaticamente uma alienada nem muito menos, como querem me rotular não sei se leviana, maldosa ou cretinamente, de qualquer maneira, de forma injusta.

Veja: uma das duas criaturas que mais me marcou na vida foi Simone Weil. Ela, judia-francesa que fugiu do Nazismo para se refugiar em Londres e que se converteu ao Catolicismo, despojou-se de todos os bens materiais para trabalhar como operária na usina de montagem acho que dos automóveis Renault, dizendo: “Se os outros não tem direito a nada (estou citando de memória, heim, Leo), eu também não tenho. A experiência de proletária para mim foi tão terrível como a dos escravos que tinham menor valor para os romanos e que eles marcavam com um estigma a fogo”. Foi isso que a transformou e provocou nela uma noção do que era ser uma besta de carga, um robô humano, ela passou a ser uma mártir da caridade. São esses exemplos que me dão esperança de que não tenha sido tudo em vão, que alguma coisa positiva poderá restar de todos estes esforços, contrariando meu pessimismo tão radical. E perturba que exista, para só citar uma discrepância, um pensamento religioso tão luminoso na Índia ao lado da miséria indescritível da Índia. Eu temo que não haja mais tempo para todos esses esforços, da metafisica, da religião, da literatura. Só através da multiplicação acelerada por milhares de estudiosos sem preconceitos, é que se criará talvez uma brecha de alento, quem sabe?”

“Me parece que não. Acho que Deus está irremediavelmente e definitivamente sozinho. Deus está na escuridão, o próprio Deus luta, procura, quer que alguém lhe estenda a mão, O ajude. Por isso coloco Deus de várias maneiras na minha literatura: Deus pode ser a crueldade, a Busca, o indiferente…”

“Mas claro! Eu não posso fazer a menor ideia do que seja Deus, o divino, por isso que em tudo que eu escrevo vejo Deus poliédrico, inexplicável em termos meramente humanos. Só com a luminosidade de pesquisa psíquica ou espiritual, da alma, é que poderemos ter esperança. Quando recuerarmos o sentido da sacralidade de tudo. Porque os humanos chegaram a um tal grau de boçalidade e bestialidade que desacreditaram da intuição, perderam a noção do sagrado, que é possivelmente a perda mais funesta, mais terrível que se possa sofrer.”

“Continua sendo uma perda fundamental, porque é uma transferência do universal para a fração, já que a sacralidade está em tudo, numa folha de árvore, num canto de parede, em tudo. De repente uma centelha transmuta por exemplo uma pedra em parte integrante do sagrado ou alguém te traz uma noção de sacralidade perdida, entende? O homem precisa chegar a reformulações decisivas como a da pesquisa filosófica abranger a biologia do espírito, o homem se conscientizar de que o espírito nasce da matéria, a matéria pode ser uma manifestação visível do espírito.”

“O Hermann Broch sempre me impressionou muito. Porque ele especifica bem esse tipo de tensão entre a literatura e a vida, agir e escrever, entre a utilidade ou necessidade de escrever em meio a um mundo que recusamos pelos seus horrores cotidianos, como o nosso. Broch interrogou-se a si mesmo como quem contempla, sem nenhuma outra intenção que não fosse a de conhecer o de dentro de si mesmo, esse abismo que nós levamos dentro de nós, como individuos e como coletividades. Eu então achei que o Broch tinha tocado num ponto do real, do fundamental ao falar desse choque entre atuar e refletir sobre o mundo com o qual nos deparamos já quando nascemos para a vida. Eu também comecei a me perguntar: quem sabe o que nós chamamos de Natureza, Deus, criação, destino, o que for, não passa de um jogo de cartas marcadas antecipadamente, um jogo no qual o homem nem conta como elemento participante? Quem sabe se nós, seres humanos, diante de tudo já não temos mesmo opções. E se tudo já tiver sido pré-estabelecido, sem a mínima referência ao homem e inteiramente à sua revelia? Hermann Broch me forçou a reformular toda a estrutura da minha vida.”

“Existem determinados caminhos que podem reposicionar o homem. Um desses caminhos seria a pesquisa científica, outro a filosofia metafísica e, para mim, sobretudo a Literatura, que é o meu meio de expressão (não sou pianista nem pintora) porque é através da literatura que você pode se conhecer a si mesmo. Ora, só se conhecendo a si mesmo é que você pode conhecer e reconhecer o próximo, o Outro. Essas diversas vias capazes de reestruturar a visão que o homem tem da vida, de si, do universo, para mim tem na Literatura uma conotação afetiva que reforça a escolha da Literatura como instrumento da minha expressão. Meu pai, Apolônio Prado Hilst, era poeta e ensaísta, assinava com o pseudônimo de Luiz Bruma, foi uma das primeiras pessoas a falar em cooperativismo no Brasil, era filho de um francês de Lille que se casou com uma fazendeira paulista da familia Almeida Prado. Meu pai, nos escritos que minha mãe guardou dele e me deu para ler, se interrogou sobre o que aconteceria à alma na loucura. Escrever é então para mim sentir meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração, como ele fazia, ou a ter emoções com lucidez. A Literatura para mim é tudo isso e deixa sempre o signo de uma interrogação tão grande que não pode ser perscrutada, entende? Afeto, saudade, coração, mente, compaixão, busca, terror, pessimismo e, paradoxalmente, quem sabe a esperança de chegar um dia a ter esperança – isso é a literatura que eu escrevo e como eu a concebo para mim: acho que ela é ficções vividas em todos esses níveis e tudo envolto pela pátina (ou melodia?) da saudade do meu pai.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “As múltiplas seduções de Hilda Hilst: entrevista .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.