Wedekind. Um moralista do expressionismo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/06/19. Aguardando revisão.

Frank Wedekind integra-se plenamente no movimento artístico conhecido sob o nome de Expressionismo, mais ainda: ele determina muito de suas características fundamentais. Já a pintura e o teatro, a prosa e a poesia de sua época se tinham entrincheirado no mesmo ponto estratégico do qual atacariam a burguesia, “uma sociedade de bases inseguras porque putrefatas na sua essência”, como a condena Benn. O libelo de Wedekind participa dessa veemência e põe a nu o mundo infra-humano, o bas-fond dessa estrutura social, os seus personagens são mercadores de “marionetes” de modernos milagres medievais – na frase de Feuchtwanger – elas simbolizam os vícios e os pecados capitais do decálogo pessoal desse autor: a cupidez, a intolerância, a estupidez, a crueldade, a hipocrisia.

A vida de Wedekind, em si, já constitui um típico drama expressionista. Nascido em 1864, rebelou-se desde cedo contra o pai, cujo despotismo e hipocrisia ele identificaria mais tarde com a sociedade burguesa. Para manifestar concretamente sua independência, foi para a Suíça, passado a trabalhar na fábrica de sopas “Maggi”. Depois de breve contato com o arauto do teatro naturalista alemão, Hauptmann, separou-se dele violentamente e, aos 27 anos de idade, escrever, O Despertar da Primavera, que causou um escândalo ao ser publicado, já que só foi representada nove anos mais tarde. Esta peça descreve a eclosão trágica do instinto sexual num grupo de adolescentes. A hipocrisia e o obscurantismo burgueses denunciados nessa obra mantêm os jovens ignorantes desses “fenômenos naturais” e, como consequência funesta, esses “personagens puros” são imolados à sociedade adulta, corrupta e vista sob um prisma deformante e grotesco.

Após a rápida permanência em Munique, onde criou com outros artistas o gênero novo do cabaret literário, partiu para Paris. Era seu propósito declarado “transcender a literatura”: “para criar uma nova arte, devemos procurar viver entre homens que nunca leram um livro e cujas ações são ditadas pelos instintos mais primários”. Ele ingressa, portanto, no ambiente do circo (tema de pintores expressionistas como Groz e Beckmann) e trabalha secretário de Willy Gretor, um escroc e aventureiro internacional, que forjava pinturas “clássicas” impingindo-as por milhares de marcos aos connaisseurs da arte. Este personagem exuberante da vida animal será o “homem ideal” de Wedekind, por ele glorificado em O Marques de Keith. É em Paris que o dramaturgo recebe a impressão artística mais marcante, decisiva mesmo, de toda a sua acidentada carreira. Frequentando os espetáculos de grand guignol e de varieté, Wedekind assiste a uma pantomima – Lulu, de Campsaur – cujo personagem central, em suas peças futuras, o demônio do sexo, uma espécie de Messalina moderna, baseada, originalmente, na Naná de Zola.

Regressando a Munique, colabora, durante algum tempo na revista humorística existente até hoje, Simplizissimus, mas é logo encarcerado por ter escrito versos satíricos, ofensivos à personalidade do Kaiser. Durante longos anos sua vida oscila entre a miséria e a fortuna, até que, a partir de 1902, a fama (e com ela os processos uidosos instaurados contra ele) não mais o abandonará: nesse ano, o célebre diretor Max Reinhardt encena, em Berlim O Espírito da Terra, e, em 1905, A Caixa de Pandora é ovacionada por um “público seleto” em Viena.

Em 1918, por insistência própria, se faz operar do apêndice, vindo a falecer durante essa intervenção cirúrgica desnecessária. E para que a sua existência intensa e meteórica fosse uma peça expressionista até no seu desfecho, durante as cerimônias fúnebres, quando estão prestes a depositar o caixão na sepultura, um seu amigo (ele próprio um jovem dramaturgo de certo renome) faz-lhe um panegírico demasiado fervoroso, exalta-se, investe contra os presentes, acusando-os de serem “inimigos do grande autor falecido” e tem de ser levado à força para o manicômio.

Em A Caixa de Pandora Frank Wedekind expressa-se através do escritor Alva, ao confessar: “Para mim, existe uma ação recíproca entre a sensualidade e a criação intelectual”. Paul Fechter assinala outra declaração sua, segundo a qual “A carne tem o seu próprio espírito”. Essas afirmações irmanam Wedekind – não tanto a John Donne e a um Pedro Salinas – mas a D. H. Lawrence e a Henry Miller, que reconhecem que “muitos dos males da sociedade provêm de sua recusa de reconhecer o instinto sexual como uma força vital natural”. Em suas obras teatrais notamos, porém, qua a sua avaliação da libido passa por várias fases. No primeiro ato de A Morte e o Diabo, ela é considerada “uma força redentora, um raio celeste...”; no final dessa mesma obra, ao contrário, é reconhecida a sua “origem diabólica”: o instinto sexual é um desejo insaciável, que arrasta sua vida ao caos, ao inferno, à destruição final, como sucede com a Lulu “devoradora de homens”. Em O Espírito da Terra relatara-se a ascensão de Lulu – o Eros eterno – e o seu domínio sobre os homens, no terceiro ato ela assassina seu terceiro amante. Na peça complementar, A Caixa de Pandora, assistimos, de ato em ato à sua decadência patética e inexorável. De exploradora de homens, ela passa a ser explorada por eles. No desfecho, de extraordinária dramaticidade, ela é assassinada, num bairro miserável de Londres pelo monstruoso assassino sexual Jack, o Estripador. Sua amiga fiel até a morte, a Condessa de Geschwitz, morre apunhalada, numa derradeira tentativa de salvá-la. Nesses dois dramas, portanto, Wedekind analisa, além do tema central – já extremamente ousado para a sua época – um secundário: o da perversão sexual, simbolizado pela trágica personagem da Condessa, a qual assume um papel preponderante em toda a obra.

Veementemente atacada pela sua “obscenidade”, pelo seu “niilismo”, a produção dramática de Wedekind pode despertar, a princípio, uma sensação de extremo desacerto. Deparamos com o relato de acontecimentos absurdos, com uma acumulação crescente de crueldade, de humour macabro e de ironia ácida, numa sucessão de quadros alucinantes e aparentemente desconexos. No entanto, a frase preferida de Wedekind, com que ele respondia a seus críticos, é reveladora pelo seu profundo conteúdo autobiográfico: “eu sou, acima de tudo, um moralista”. Esta confissão permite-nos compreender melhor os seus motivos artísticos e os de todo o movimento expressionista: Ao descrever esses párias “da sociedade bem pensante, esse submundo da alma humana, ele não visa apenas exigir compaixão e justiça para esses marginais. O princípio humanitário, que impregna toda a sua obra, é transcendido pelo seu critério profundamente religioso, não nos parecendo fortuitas a invocação de Cristo como”o Fundador da nossa Religião” e a citação de sua frase aos fariseus, ao prólogo de A Caixa de Pandora: “Eu vos asseguro que os publicanos e as prostitutas entrarão no céu antes de vós”.

Fundamentalmente, sua posição é idêntica à de Kierkegaard, contra os “fariseus modernos”. Como ele próprio esclarece, ao defender sua peça perante os vinte juízes que as condenaram: “Não se trata aqui de determinar a divergência existente entre a moral burguesa – cuja manutenção é tarefa que compete aos tribunais – e a moral humana, que transcende toda a qualquer justiça terrena”.

Strindberg, em Há Crimes e Crimes distinguira também entre a culpabilidade que qualquer tribunal pode absolver e aquela que só pode ser julgada pelo tribunal supremo da consciência humana individual. Esta mesma distinção, queremos crer, se estabelece no teatro de Wedekind e na sua utilização (estranhamente moral, humanitária e cristã, como verificamos) da temática sexual. A sua Condessa de Geschwitz, integrando a galeria de personagens anormais da literatura ocidental: o Edward II e o Tamburlaine de Marlowe, o Vautrin de Balzac e o Baal de Brecht, além de outros, surge como protagonista de dramas ignotos da solidão e da estigmatização social. Identificando-se com os propósitos éticos do Expressionismo, Wedekind assume a sua defesa e a redime, em fidelidade à moralidade que ele invocava como princípio condutor da sua vida:

“Ao selecionar este personagem, eu estava animado pelo desejo de salvar do ridículo a que estão fadadas as lutas espirituais titânicas, mas completamente frustradas, dessa rigorosa tragédia humana”. “Eu estava imbuído do intuito de revelar esses seres à simpatia e à compaixão daqueles não afetados pessoalmente pela anormalidade. Ao publicar essa peça, eu estava impregnado até o âmago da minha alma, da convicção de que, por meio dela, eu satisfazia um imperativo da mais alta moralidade humana...”.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Wedekind. Um moralista do expressionismo .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.