Parecer pormenorizado sobre o livro Brecht de John Fuegi, NY: Grove Press

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Para a editora Scipione, 1996/09/16. Aguardando revisão.

O autor deste imenso estudo, que levou 25 anos de pesquisa incansável para ser escrito, foi o fundador de International Brecht Society. Publicou sob a égide desta instituição 14 volumes das revistas ensaios sobre o dramaturgo, intituladas Proceeding.

O que distingue este gigantesco ensaio biográfico e crítico do ser humano e do teatrólogo Brecht e o equilíbrio com que o autor trata de visões já por si conflitantes: como estudar e descrever, com provas contundentes, a dicotomia típica de um ser humano pusilânime, riquíssimo graças a contas na Suíça e contratos milionários, egocêntrico, misógino, veladamente homoerótico e incapaz de se decidir claramente a favor da União Soviética de então ou de denunciar os campos de concentração russos, os Gulags, de que Solzhenitsyn fala tão convincente e veementemente, como ex-prisioneiro. John Fuegi consegue sair-se bem desse conflito entre admiração pela obra obtida através da mentira, do plágio, da ausência completa de ética e o nojo pelo teatrólogo que, baseado muitas vezes no roubo ou apropriação do trabalho de suas colaboradoras ou de autores estrangeiros (Kipling, o “defensor” do Imperialismo inglês, Rimbaud, Villon, Wedekind, Gay e outros) revolucionou o conceito de teatro neste século, apesar dos pesares. Um dos obstáculos praticamente intransponíveis com os quais teve que se defrontar, seguindo os rastros de Brecht deixados nos registros da antiga Alemanha comunista, a totalitária DDR (República Democrática Alemã), um grande número dos quais propositalmente rasgados, censurados e/ou mutilados, quando não carimbados com os rótulos que os tornaram inaccessíveis de privat ou politisch.

A admiração pelo artista que inovou, revolucionariamente, o teatro de meados e final deste século, logo se chocou, porém, com os dados cada vez mais desabonadores que o autor encontrava a respeito de seu biografado. Sua dúvida inicial surge ao examinar a pretensa “adaptação” de Brecht da peça de Molière, Don Juan, há indicações seguras, insofismáveis, de que Brecht não sabia francês a ponto de “adaptar” Molière para seu estilo de teatro atual. Aos poucos, o autor descobre que várias colaboradoras, fascinadas pelo charme um pouco selvagem, devastador e sem escrúpulos daquele que se chamava a si mesmo de “o pobrezinho, o coitadinho do Bert Brecht”. Nesta “adaptação” da qual Brecht não participou, decididamente, a autora real foi sua colaboradora Elizabeth Hauptmann.

Graças a uma cópia de vários documentos do Arquivo de Brecht em parte ocultos e de impossível acesso na Alemanha da era anterior à queda do Comunismo e do Muro, em 1989, e que se encontram na Universidade de Harvard e devidamente autorizado a consultar esse embora incompleto arquivo pelo próprio filho de Brecht, o autor foi ficando crescentemente pasmado e perplexo. Os arquivos revelavam um outro Brecht: milionário com contas polpudas no infame sistema bancário da Suíça, as famosas e aéticas “contas numeradas” e por meio de contratos rendosos na Europa e nos USA.

Mais, o estudo acurado, durante um quarto de século, da vida de Brecht, inserida na miséria e a Alemanha derrotada durante a Primeira Guerra Mundial; a ascensão de governos totalitários na União Soviética de Stalin, responsável pelo fuzilamento de milhões de cidadãos, a loucura que se apoderou da Alemanha com o nazismo e da Itália com Mussolini etc etc - tudo isso o autor consegue descrever, com detalhes, para realçar a figura do seu biografado. O livro começa indo até às raízes da filiação pequeno-burguesa daquele que se chamava Eugen (bem-nascido) Berthold Friedrich Brecht, cujo pai tinha um ótimo emprego burocrático e que assegurou ao filho sempre uma vida sem problemas financeiros angustiantes e imediatos. John Fuegi mostra, conclusivamente (não se trata de uma opinião pré-concebida), o desenvolvimento da personalidade do jovem Brecht: racista contra os chineses, a favor do Kaiser Wilhelm II que já em 1871 arrasara a França, a favor da centelha do nazismo que foi o antissemitismo, aliado à xenofobia crescente, do povo alemão e que se encontrava na fórmula sucinta: “os judeus nada mais são do que os assassinos de Cristo”. John Fuegi distingue vincadamente as várias fases do teatro de Brecht:na sua juventude, tangido pela ambição desmesurada de ser “o herdeiro dos dois supremos dramaturgos alemães do período entre as duas Guerras Mundiais, Hauptmann e Wedekind”. Inicialmente, portanto, suas peças insistem numa temática monocórdica de violência, ódio às mulheres como “seres inferiores, um nada velado culto do homoerotismo como uma união de”deuses” germânicos, sempre inclementes, insensíveis, rudes, toscos, sempre à beira do assassínio, do estrupo, da catástrofe, das orgias sexuais sanguinolentas.

Às escondidas, o jovem Brecht lia avidamente e copiava sem o menor escrúpulo trechos inteiros do poeta francês Rimbaud, de Villon, de Whitman, norte-americano, do teatrólogo destruído dos bem-pensantes alemães com suas peças de horror e sexo desenfreado, Wedekind .…surpresa! o grande defensor da “superioridade inata da raça branca, notadamente inglesa” sobre os indianos ou africanos, “nitidamente inferiores”, Kipling se referira à “carga que pesa sobre o ombro da raça branca” de civilizar o mundo por meio do British Empire. O autor colonialista inglês tinha mais atrativos ainda para Brecht, que permaneceriam ao longo de toda a sua carreira de dramaturgo e diretor teatral: ele descrevia casernas de exército, sem a presença de mulheres, dentro de um mundo forçosamente masculino, características que correspondiam ao temperamento e aos objetivos de Brecht no início de sua fulminante trajetória. Os “avanços” tecnológicos da máquina de moer seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial o impressionam grandemente, a invenção da metralhadora, dos tanques, dos aviões bombardeiros, do gás de mostarda, que as tropas alemãs pela primeira vez na História da humanidade usaram contra os aliados durante a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918. Habilmente “dispensado” do serviço militar por influência de seu pai, Brecht, o que nunca se soube até este livro, inspira-se também no piegas autor alemão de fictícias histórias passadas entre os indígenas dos EUA, Karl May.

Permite-se uma posição propositalmente chocante ao considerar a Bíblia “um livro muito cheio de engodo...e um livro cruel” e se jacta de ser capaz de escrever melhor do que um dos clássicos do teatro alemão pregresso, Hebbel, e do que seu modelo atual, Wedekind. Escatológica, em certos momentos cruamente vulgar, a dramaturgia de Brecht fala de excrementos, de estupros enquanto os homens defecam sobre suas mulheres vitimadas e a miúdo assassinadas depois da violação como se fossem animais ou receptáculos indignos do sêmen masculino. Matricula-se na Universidade de Munique, no Sul da Alemanha, para supostamente estudar “medicina”, na realidade para ter um pretexto concreto para escapar do alistamento militar que o levaria ao front. Aí o impressionam vivamente 3 autores: Carlitos, Ibsen e Strindberg. Strindberg, o dramaturgo sueco, o fascina por sua obra claramente misógina.

Não somente Brecht se dedicava a desmistificar a hipocrisia do mundo das convenções burguesas, que varriam a libido e a ambição de riqueza para baixo do tapete, o romancista insigne Thomas Mann em Morte em Veneza mostrava um homem já idoso apaixonado, embora platonicamente, por um belíssimo menino polonês, que está com sua família (dele, menino polonês) num hotel de luxo em Veneza. Segue-se a decadência e morte do amante imaginário. O irmão de Thomas Mann, Heinrich Mann, socialista, não tão bom autor nem pela metade, deixa consignada, porém em “O Anjo Azul”, depois filmada por Emil Jannings e Marlene Dietrich. a trajetória aviltante de um professor (e na Alemanha daquele tempo ser um Gelehrte, um Professor era tido hierarquicamente em alta conta) perdida e ruinosamente apaixonado por uma cantora e prostitua de cabaré que o leva à catástrofe.

Lê, embora sem aprofundar-se na leitura, o filósofo Schopenhauer que o adverte sobre as “virtudes” de mostrar-se sempre tirânico, dono único da verdade e ilimitadamente vaidoso e arrogante. Brecht - sem demonstrar gratidão pelos autores que pilha impiedosamente e sem menção de seus nomes - cria dramas que são “colagens” de vários trechos e enredos de outros autores. Desde a sua primeira peça, Baal, inspirada pelo forte drama de Büchner Wozzeck (uma das obras-primas do teatro expressionista alemão. mais tarde musicada pelo músico dodecafônico austríaco Alban Berg).

Na primeira guerra mundial se enredaram 30 nações. Data também a partir desse conflito a hecatombe de 30 milhões de pessoas mutiladas, banidas, arruinadas e 9 milhões de mortos. Brecht, impertérrito, só pensava em ligar o cabaré político de comédia ácida, típico de Berlim, nos anos que precederam a tomada do poder pelos nazistas de Hitler com objetos de destruição seus contemporâneos como o revólver ou a “importação” da guitarra, da música e da dança para a montagem de suas peças. Aqui o autor tenta misturar dados muito complexos, sobre a inflação devastadora da chamada República de Weimar, que precedeu de pouco o advento do Reich nazista, a miséria da classe média, a ausência de perspectiva, as pesadas reparações de guerra que a Alemanha derrotada teve que pagar à França e que obstaram qualquer progresso das massas alemã. E uma longa, alentada, profunda, pesquisa sobre a época do início da ascensão de Brecht como escritor e diretor de teatro. Ele se torna famoso pelo lema amoral: “Primeiro vamos cuidar da pança, depois é que vem a Moral” ou a admoestação que colhe de uma leitura superficial do grande iconoclasta Nietzsche: “Quando fores encontrar uma mulher (a palavra em alemão é pejorativa e poderia significar também prostituta reles) não esqueças de levar contigo um chicote”. Os traços sadomasoquistas de Brecht são como que um componente genético da sua psique.

Suas peças anunciam uma forma de sinal apavorante de fim dos tempos: Tambores na Noite, No Labirinto das Cidades. Pesca inspiração onde e em qualquer lugar a que tiver acesso. Tendo sabido que Mayakovsky e outros tinham adotado no início da Revolução de 1917 elementos até então inéditos no palco, copia-os sem demora: jazz, boxeadores, gente que ganha a vida fazendo versos ao som de realejos pelas ruas de Munique, introduz o circo e o cinema em seu teatro. E fala sempre de podridão e ausência de futuro que ele, o “defensor dos operários oprimidos” falou sem cessar.

Depois que começa a colaborar no tabloide pasquim Querschnitt (Corte vertical) ele se afasta de suas anteriores loas ao homossexualismo e ao contrário, começa a denegrir os homossexuais, acusando Thomas Mann, o poeta Rilke, e o poeta simbolista alemão Stefan George.

Não parece ter lido Marx, apenas o folheou rapidamente, mas viu no marxismo um ótimo veículo para a sua ilimitada vaidade e sua ambição. Sempre ele dá as suas falas no palco um tom voluntariamente chocante e escatológico, bastem dois horrendos exemplos: “Mais vale o cu de Carlitos do que as mãos (da grande atriz) Eleonora Duse” ou “Para eles era indiferente cagar ou estuprar, por que não fazer os dois ao mesmo tempo?” Mesmo a Esquerda à qual ele, da boca para fora, queria servir, faz reservas muito sérias sobre o caráter de Brecht. O excelente crítico Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, vê em Brecht, que conhece pessoalmente, “uma personalidade esmagadora, fascista em sua essência”. Também o servil adulador de Stalin, o crítico húngaro Luckás não demora a demonstrar seu desprezo por Brecht. Nem a União Soviética se interessa em montar qualquer de suas peças.

Ele confunde, com uma superficialidade inigualável, Trotsky e Confúcio, o sábio chinês e o anti-stalinista. Mas jamais ele faz nem a mais velada crítica aos campos de concentração stalinistas, os monstruosos Gulags já na região do Polo Norte, tão “imune” a tais denúncias quanto Pretes e Jorge Amado no Brasil ou Neruda no Chile.

Mesmo temendo a tentacular e medonha NKVD, a polícia secreta que substitui a Cheka e antecede a KGB criminosa e arbitrária, ele elabora uma de suas obras-primas, a peça Galileu. Teria sido uma tímida mise-em-scène do rumoroso e totalitário julgamento de Bukharin pelos sanguinários “tribunais” de Stálin? Ele se preocupava mais em estrear o Galileu na Broadway, depois que conseguiu fugir da Alemanha nazista om 1935.

Inspirando-se na magnificência das peças elizabetanas de Marlowe e sobretudo de Shakespeare, Brecht deixou, conforme o certeiro juízo formulado pelo excelente ator inglês radicado nos EUA e que fez o papel-título de Galileu, Charles Laughton, duas peças irretocáveis: Os Fuzis da Mãe Coragem e Galileu. Talvez se devesse arrolar entre na obras-primas ainda a Ópera de Três Vinténs também. O autor vai até longínguas regiões da Russia para entrevistar várias personalidades (todas mencionadas especificamente no livro) como Lev Kopolev, que foram torturadas e jogadas no frio incessante dos Gulags perto do Polo Ártico: essas pessoas que conheceram Brecht pessoalmente acham que “não têm mais nada a perder” depois daquilo pelo que passaram e revelam traços moralmente desabonadores do revolucionário plagiador alemão sem caráter, um Macunaíma germânico preguiçoso e sem espinha dorsal ética... John Fuegi que teve que decorar muitos dos depoimentos que lhe foram confiados, alude à impotência da Lei de Livre Acesso à Informação norte-americana (Freedom of Information Act) diante dos obstáculos criados pela CIA ou pelo FBI. Afirma, com provas concludentes, que Brecht se apoderou de peças escritas por suas colaboradoras como Elisabeth Hauptmann, Margaret Steffin e Ruth Berlau. Finalmente, desafia qualquer pessoa a contradizer, com provas, a sua longa série de retratos de Brecht como excelentes dramaturgo e diretor e abjeto ser humano.

Finalmente: Um livro de tão excelente, abrangente e profunda erudição só terá, creio, pouca repercussão num país assolado pela mediocridade televisiva e dos Paulo Coelhos et caterva brasileira e devastado pelo controle das “patrulhas ideológicas” de um comunismo paleolítico predominante entre nós. Sem dúvida, esse livro traria um grande prestigio cultural para a Editora Scipione. Haveria possibilidade de resumi-lo e dotá-lo de fotos das montagens de Brecht e fotos dele e de alguns dos personagens que determinaram sua vida?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Parecer pormenorizado sobre o livro Brecht de John Fuegi, NY: Grove Press .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.