Nossa poesia negra, tentando falar alemão
Na Alemanha e na Suíça, um volume pequeno com o título bilíngue Schwarze Poesie, Poesia Negra divulga, nos países de língua alemã, a poesia brasileira feita por poetas negros. E, francamente, aí reside seu único mérito, pois a introdução (de Moema Parente Augel) está eivada de todos os chavões possíveis e, ai de nós, com as mais prosaicas, menos poéticas traduções para o alemão de Johannes Augel.
Quem procurar este pequeno livro terá de importá-lo da Edition Diá (com endereços na Suíça e na Alemanha). Vale a pena, reitero, quase que unicamente pelas páginas da esquerda, em que são otimamente selecionados alguns dos supremos poetas afro-brasileiros contemporâneos.
Em artigo da revista trimestral norte-americana The Black Scholar já fiz referência, na seção Biblioteca que redijo às sextas-feiras neste jornal, à importância e relevância da abrangente coletânea de versos em suahili, em português, em inglês, do Haiti, da área de todo o Caribe, da África - enfim em todos os locais, quase, da Diáspora negra imposta brutalmente pela escravidão.
No original e não nas capengas traduções, reitero, estão os versos refinados e sutilmente inteligentes, para começar, de Cuti. Com requinte verbal e sem ser pedante jamais, Cuti pede:
“Leva
a lava leve do meu vulcão
pra casa
e coloca na boca do teu
se dentro do peito
afogado estiver de mágoa
O fogo de outrora
do centro da terra
virá sem demora
Porque não há
por completo
vulcão extinto no peito” (“Oferenda”)
Eloquente, vibrante, ele alterna o desafio a ferro e fogo e a doçura sonhada de um mundo justo em “Esperança”:
“Há uma esperança decisiva na ponta do fuzil:
a morte ou a vida enriquecida
aquecida de amor e comida.
Há uma esperança levantada nos punhos fechados:
a morte ou a vida cheia de vida
plena de igualdade e verdade.
“Há uma esperança na faca da sombra:
a morte ou a vida dos meninos
meninas homens mulheres e os sinos.
Há uma esperança de tocaia na fúria:
a vida crivada de sonhos
de balas de mel na boca do mundo”
Se a poesia vigorosa de Cuti enlaça-se com a prosa imorredoura de Martin Luther King em sua mensagem esplêndida I Have a Dream (“Eu tenho um sonho”) e com a ameaça de vingança de Da Próxima Vez, Fogo!, de James Baldwin, nem por isso ele deixa de falar dos “modelos” brancos impostos à raça negra depois da libertação da escravatura do preconceito nesta nossa inexistente “democracia racial” mas “hipocrisia racial”. É verdade que não temos o nazismo do apartheid monstruoso da África do Sul nem o ódio racial que talvez a maioria dos cidadãos brancos assume perante seus conterrâneos negros, notadamente nos Estados do sul dos Estados Unidos.
Evidentemente, neste artigo delimitado fortemente pelo pouco espaço, no entanto a violência dos versos de Oliveira Silveira não pode ser esquecida:
“Um charque esta alma retalhada
um charque esta alma ressentida
um charque esta alma aqui
um charque
charque sal
charque sol
charque sul
esta carne rasgando-se sem lâmina
este sangue ancestral ferindo ardendo
esta alma negra sal e sol nos lanhos
um charque
charque sal
charque sol
charque sul
você sabe uma faca abrindo fendas
na carne um raio um terremoto um mar
de sangue pelo meio uma alma repartida
um charque
charque sal
charque sol
charque sul”
A veemência já intolerante de mesuras e mentiras explode igualmente nos versos incendiários, drásticos de Adão Ventura como
ALGUMAS INSTRUÇÕES DE COMO LEVAR UM NEGRO AO TRONCO
“Levar um negro ao tronco
e cuspir-lhe na cara.
levar um negro ao tronco
e fazê-lo comer bosta.
levar um negro ao tronco
e sarrafiar-lhe a mulher.
levar um negro ao tronco
e arrebentar-lhe os culhões.
levar um negro ao tronco
e currá-lo no lixo.”
Houvesse mais vagar, não cometeríamos a injustiça de não focalizar outros poetas importantes, de linha mais urbana como Oswaldo de Camargo; Éle Semog; a angústia existencial de Paulo Colina, provavelmente mais liberto dos temas de escravidão e abolição da escravidão; o sarcasmo cortante de Abelardo Rodrigues. Nesta antologia sumamente feliz na escolha dos versos e poetas, não poderia deixar de ser mencionada, ainda que por último, a voz impressionante, decisiva de Lourdes Teodoro, que vê a perspectiva urbana e a contrasta com o passado de Quilombos e Palmares de forma indelével:
BALADA DEL QUE NUNCA FUÉ A PALMARES
“Somos pivetes,
balconistas,
assaltantes,
e quantos mais
que de Palmares nem
ares
que de Palmares
só os ais
helicópteros,
Eerrepês,
patrulhas,
volks-w,
sobre favelas, baixadas,
vilas e areais,
metralhadoras,
trinta e oitos
pistolas e pontapés,
socos e beliscões.
Salve 20 de Novembro
eu, de Palmares
nem os ares,
eu de Palmares,
só os ais.”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Nossa poesia negra, tentando falar alemão},
booktitle = {Racismo e literatura negra},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {1},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/2-literatura-brasileira/12-nossa-poesia-negra-tentando-falar-alemao.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1990/03/17. Aguardando revisão.}
}