Nossa poesia negra, tentando falar alemão

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1990/03/17. Aguardando revisão.

Na Alemanha e na Suíça, um volume pequeno com o título bilíngue Schwarze Poesie, Poesia Negra divulga, nos países de língua alemã, a poesia brasileira feita por poetas negros. E, francamente, aí reside seu único mérito, pois a introdução (de Moema Parente Augel) está eivada de todos os chavões possíveis e, ai de nós, com as mais prosaicas, menos poéticas traduções para o alemão de Johannes Augel.

Quem procurar este pequeno livro terá de importá-lo da Edition Diá (com endereços na Suíça e na Alemanha). Vale a pena, reitero, quase que unicamente pelas páginas da esquerda, em que são otimamente selecionados alguns dos supremos poetas afro-brasileiros contemporâneos.

Em artigo da revista trimestral norte-americana The Black Scholar já fiz referência, na seção Biblioteca que redijo às sextas-feiras neste jornal, à importância e relevância da abrangente coletânea de versos em suahili, em português, em inglês, do Haiti, da área de todo o Caribe, da África - enfim em todos os locais, quase, da Diáspora negra imposta brutalmente pela escravidão.

No original e não nas capengas traduções, reitero, estão os versos refinados e sutilmente inteligentes, para começar, de Cuti. Com requinte verbal e sem ser pedante jamais, Cuti pede:

“Leva

a lava leve do meu vulcão 

pra casa 

e coloca na boca do teu 

se dentro do peito 

afogado estiver de mágoa 

O fogo de outrora 

do centro da terra 

virá sem demora 

Porque não há 

por completo 

vulcão extinto no peito” (“Oferenda”)

Eloquente, vibrante, ele alterna o desafio a ferro e fogo e a doçura sonhada de um mundo justo em “Esperança”:

“Há uma esperança decisiva na ponta do fuzil: 

a morte ou a vida enriquecida 

aquecida de amor e comida. 

Há uma esperança levantada nos punhos fechados: 

a morte ou a vida cheia de vida 

plena de igualdade e verdade. 

“Há uma esperança na faca da sombra: 

a morte ou a vida dos meninos 

meninas homens mulheres e os sinos. 

Há uma esperança de tocaia na fúria: 

a vida crivada de sonhos 

de balas de mel na boca do mundo”

Se a poesia vigorosa de Cuti enlaça-se com a prosa imorredoura de Martin Luther King em sua mensagem esplêndida I Have a Dream (“Eu tenho um sonho”) e com a ameaça de vingança de Da Próxima Vez, Fogo!, de James Baldwin, nem por isso ele deixa de falar dos “modelos” brancos impostos à raça negra depois da libertação da escravatura do preconceito nesta nossa inexistente “democracia racial” mas “hipocrisia racial”. É verdade que não temos o nazismo do apartheid monstruoso da África do Sul nem o ódio racial que talvez a maioria dos cidadãos brancos assume perante seus conterrâneos negros, notadamente nos Estados do sul dos Estados Unidos.

Evidentemente, neste artigo delimitado fortemente pelo pouco espaço, no entanto a violência dos versos de Oliveira Silveira não pode ser esquecida:

“Um charque esta alma retalhada 

um charque esta alma ressentida 

um charque esta alma aqui 

um charque 

charque sal 

charque sol 

charque sul 

esta carne rasgando-se sem lâmina 

este sangue ancestral ferindo ardendo 

esta alma negra sal e sol nos lanhos 

um charque 

charque sal 

charque sol 

charque sul 

você sabe uma faca abrindo fendas 

na carne um raio um terremoto um mar 

de sangue pelo meio uma alma repartida 

um charque 

charque sal 

charque sol 

charque sul”

A veemência já intolerante de mesuras e mentiras explode igualmente nos versos incendiários, drásticos de Adão Ventura como

ALGUMAS INSTRUÇÕES DE COMO LEVAR UM NEGRO AO TRONCO 

“Levar um negro ao tronco 

e cuspir-lhe na cara. 

levar um negro ao tronco 

e fazê-lo comer bosta. 

levar um negro ao tronco 

e sarrafiar-lhe a mulher. 

levar um negro ao tronco 

e arrebentar-lhe os culhões. 

levar um negro ao tronco 

e currá-lo no lixo.”

Houvesse mais vagar, não cometeríamos a injustiça de não focalizar outros poetas importantes, de linha mais urbana como Oswaldo de Camargo; Éle Semog; a angústia existencial de Paulo Colina, provavelmente mais liberto dos temas de escravidão e abolição da escravidão; o sarcasmo cortante de Abelardo Rodrigues. Nesta antologia sumamente feliz na escolha dos versos e poetas, não poderia deixar de ser mencionada, ainda que por último, a voz impressionante, decisiva de Lourdes Teodoro, que vê a perspectiva urbana e a contrasta com o passado de Quilombos e Palmares de forma indelével:

BALADA DEL QUE NUNCA FUÉ A PALMARES 

“Somos pivetes, 

balconistas, 

assaltantes, 

e quantos mais 

que de Palmares nem 

ares 

que de Palmares 

só os ais 

helicópteros, 

Eerrepês, 

patrulhas, 

volks-w, 

sobre favelas, baixadas, 

vilas e areais, 

metralhadoras, 

trinta e oitos 

pistolas e pontapés, 

socos e beliscões. 

Salve 20 de Novembro 

eu, de Palmares 

nem os ares, 

eu de Palmares, 

só os ais.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Nossa poesia negra, tentando falar alemão .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.