Arnold Toynbee, uma opção para o fim do mundo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975/10/25. Aguardando revisão.

Arnold Toynbee é o equivalente, como historiador, à soma das qualidades do inglês excêntrico e erudito. Não lhe bastava estudar, décadas a fio, 21 civilizações e compará-las. Inovando o estudo da História, ele combatia o nacionalismo estreito de historiadores franceses, ingleses ou alemães e alçava-se a uma visão panorâmica do fluxo da vida humana durante os últimos cinco ou seis mil anos de civilização, que se sucederam aos quase dez milhões de barbárie anteriores ao Egito e à Assíria. Revendo também o conceito determinista e fatalista de Marx e de Spengler, ele provava que as civilizações não sucumbem quando se defrontam com um desafio moral para a sua vitalidade: do contra-ataque a esse ataque é que dependerá o resultado da luta. Portanto, contrariando o pessimismo de Spengler, as civilizações, deslocando-se do Oriente para a Europa e da Europa para as Américas e a Austrália, não estavam inexoravelmente condenadas a morrer: poderiam adquirir novas formas que lhes dessem resistência e flexibilidade para sobrepor-se aos desafios. E negando o determinismo do fato econômico como fator único na manutenção ou queda das civilizações, ele reafirmou a importância decisiva da busca espiritual do homem, incapaz de ser apaziguada apenas por uma sobrevivência física de seu organismo, sua mente e seu coração mortos pela falta de liberdade e de expressão.

Como o multiforme Proteu na mitologia grega, Toynbee assumia feições que contrariavam frontalmente todo posição “histórica” fossilizada, do historiador. Com sua vasta erudição – que abrangia conhecimento sólido do grego antigo a ponto de considera-lo sua língua materna de pensamento –, ele destruiu os mitos mumificados de áreas vizinhas e insuflou atitudes e filosofias novas na psicologia, na sociologia, na economia e na antropologia. Em plena era hitlerista, de “superioridade germânica” sobre todas as outras raças, ele revolucionava, com dados concludentes da arqueologia, a grandeza das civilizações da África negra, pisoteadas e destruídas por seus conquistadores árabes ou europeus. Carlitos na tela e Toynbee nos halls de aulas das grandes universidades, de Oxford e Cambridge, acusavam juntos, cada um com seus meios, o mesmo sistema industrial que torna o homem um mero parafuso dentro de uma engrenagem gigantesca nas linhas de montagem, privando sua vida de qualquer significado, a não ser como elemento menor da produtividade mecânica.

Enquanto os resquícios da denominação britânica da Índia reduziam as grandes religiões – o Hinduísmo, o Brahmanismo, o Budismo – a “curiosidades” de nativos “inferiores”, ele traçava o primeiro arco que unia o intelecto ocidental com o misticismo indiano, Destruidor de ídolos, Toynbee negou tanto a tese de que os judeus fossem “o Povo Escolhido por Deus” como a de que havia raças ou povos “superiores”; havia, objetivamente, povos criadores de cultura e seus satélites: a Grécia, a Judéia, a Assíria no Ocidente, a China e a Índia no Extremo Oriente.

Na época em que o urbanismo era exaltado como a solução ideal para todos os males da sociedade humana, ele alertava, profético, para a destruição da Natureza e par ao preço impossível que o homem teria que pagar pelo rompimento do delicadíssimo equilíbrio de seu meio-ambiental: a fome, a poluição. Prevendo claramente a catástrofe das megalópoles – as cidades gigantescas como São Paulo ou Los Angeles – ele diagnosticava com precisão seus males implícitos: a injustiça social, a violência, o crime, a alienação das multidões solitárias, a sexualidade brutalizante, as drogas como fuga de um acúmulo de contradições internas e externas.

Escrevendo um inglês claro, de requintada elegância e simplicidade, ele expunha suas ideias com abundância de exemplos tirados da era ptolemaica do antigo Império egípcio ou de sinais mais recentes: é absurdo aderir ao preconceito do homem de negócios que crê cega e unicamente no fanatismo do lucro, da exploração intensiva dos recursos minerais e hídricos para multiplicar, em todos os quadrantes da terra, o mesmo modelo final do Ocidente: a tecnologia tratando o ser humano, a flora, a fauna, os rios e o mar como se fossem ações da Bolsa ou pedras de construção. Pode-se usar métodos científicos, aplicáveis só a seres inanimados, a seres vivos e mais absurdamente ainda a seres humanos?

Toynbee não hesita em trazer para o próprio campo dos historiadores a questão, negligenciada pela maioria de seus colegas, de que a História não pode ser dividida em seções como numa linha de montagem de uma fábrica. A nomenclatura moderna de “laboratórios de estudos históricos”, - introduzida na maioria das universidades, é a prova da subordinação do historiador à avassaladora mecanização da vida humana imposta pela Revolução Industrial e agravada pela tecnologia da automação, da bomba atômica, da física espacial. Os antigos “seminários de História” eram, fiéis à sua etimologia, sementeiras de livres e científicos pensamentos, debates, ideias, analogias, discordâncias.

Contestador como os hippies quanto a felicidade coletiva e individual que uma sociedade materialista pudesse trazer em Nova York como em Moscou –, Toynbee ia além, ao reconhecer na política dominadora de um Bismarck ou no domínio colonial dos brancos sobre as culturas indígenas das Américas, da África, da Ásia, e a própria negação dos benefícios que a era industrial poderia trazer para a humanidade. Tinha coragem de reconhecer e proclamar que da industrialização como fim em si mesma surgiram os horrores de desembocaram em Auschwitz, em Hiroshima, nas neuroses coletivas dos grandes centros e na ausência de democracia: o Nacionalismo – que faz cada povo considerar-se superior aos demais e a julgar, todos os outros por seu nível de desenvolvimento material; a Pilhagem Econômica que subjugou povos inteiros, dos Andes ao Himalaia, explorados pelo homem branco da Europa, que se julgava detentor das únicas verdades e únicos modelos universalmente válidos, fora dos quais não haveria a “salvação” do progresso a qualquer custo; a Perda dos Valores humanos e culturais nas grandes aglomerações anônimas em que desapareceram a comunidade, o agrupamento, o indivíduo, para ceder às forças totalitárias e globalizantes do Estado, do partido, do lucro, da Nacionalidade, da Raça.

Circularmente, a obra imperecível de Arnold Toynbee voltou às suas origens. O ser humano – ele pregou nas páginas finais dos 12 grossos volumes que constituem sua magistral A Study of History sobreviveu quando se defrontou com o desafio da Natureza: submeteu-se à irrigação, ao asfaltamento das estradas, ao fogo, à roda, respondendo à fome com a agricultura, à queda do Império Romano com a absorção cultural dos bárbaros, a Itália renascentista revivendo o espírito livre da Grécia antiga. Agora, todos os homens e mulheres da terra estão diante do novo e mais apavorante desafio: poderemos sobreviver à ameaça do homem contra o seu semelhante, ambos brandindo armas atômicas em suas mãos ameaçadoras, hostis e irreconciliáveis?

É afirmativa, é de esperança a visão que Toynbee vislumbra no final de seus 86 anos de vida e reflexão criadora. Sim, a humanidade poderá continuar existindo se aderir à única alternativa que existe para a sua aniquilação nuclear e planetária: conhecer as demais culturas, conhecer e amá-las sem preconceitos, considerando todas as ramificações da arte, da ciência, da habilidade humanas em todas as latitudes como galhos partidos de um tronco único: a imensa Família Humana, variada em suas manifestações, mas unitária na sua origem e essência.

Transcendendo os próprios limites éticos do Cristianismo de amor ao próximo e ultrapassando a própria estrutura das Nações Unidas, ele propõe um renascimento espiritual do homem, capaz de florescer no amor ao patrimônio comum da humanidade, coparticipe de todas as múltiplas expressões de sabedoria e inteligência de todas as raças e nacionalidades. Um respeito pelo próximo que permita a tolerância de um Governo Mundial sem exércitos, sem armamentos e sem soberanias nacionais hostis. Só então o homem poderá reconciliar seu intelecto – que o levou à catástrofe das guerras - com seu coração, que anseia por uma reunião das várias tribos humanas na Tenda Maior da Humanidade.

É a re-humanização do homem, coisificado pelas invenções que seu cérebro engendrou, que ele considera como a única forma de se atingir a Utopia – única escolha que resta ao ser humano além do suicídio universal e nuclear.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Arnold Toynbee, uma opção para o fim do mundo},
  booktitle = {Conferências, ensaios e alguns artigos especiais},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {9},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-9/07-tres-vezes-toynbee/01-arnold-toynbee-uma-opcao-para-o-fim-do-mundo.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1975/10/25. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Arnold Toynbee, uma opção para o fim do mundo .” In Conferências, ensaios e alguns artigos especiais, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 9. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.