Hilda Hilst. Em prosa ou poesia, a raridade de uma obra à frente de seu tempo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1976/01/24. Aguardando revisão.

Tempo de verão. Férias. O Brasil entra na modorra do cansaço, que ninguém é de ferro, depois de trabalhar e/ou estudar o ano inteiro. As próprias editoras entram numa sesta preguiçosa. Estremunham-se. Ficam silenciosas presas ao pretexto triplo: festas (Natal, Ano Novo), férias, carnaval. Só depois do “tríduo momesco” é que todos dirão adeus à carne e as gráficas retomarão a impressão das palavras, que cristalizam a cultura, a sensibilidade e a inteligência brasileiras, uma tríade que se opõe, paciente, teimosa, às tendências naturais de outro triângulo nacional ameaçador: futebol, carnaval e samba – ai de nós, nenhum deles ainda inspirador de nada válido além das pernas e da pelvis. Com as raríssimas exceções de letras de música popular ou de um conto como “A Morte da Porta Estandarte” de Aníbal Machado.

O que fazer então? Hibernar no verão? Dormir, morrer, sonhar, como pedia Hamlet? Não. Há valores permanentes, que não fenecem no verão, não se interrompem com Momo nem com o réveillon no Guaruja.

São os grandes escritores do Brasil que continuam secretos, como se escrevessem em línguas mortas indecifráveis, como o etrusco. Alguns exemplos, assim ao acaso? Adolfo Caminha e seu O Bom Crioulo, as obras de Lima Barreto, de Jorge de Lima.

Não é exagero nem ousadia afirmar – e provar -, porém, que, depois que Guimarães Rosa morreu, a mais extrema, a mais audaz, a mais decisiva explosão literária da prosa no Brasil se deu com Hilda Hilst.

Hilda Hilst? Os que não conhecem pensam que é alguma poetisa estrangeira, os poucos que a conhecem a consideram “apenas” uma excelente criadora de poemas belíssimos.

Ingênuo engano, Hilda Hilst é – muito mais do que poeta – o equivalente, em língua portuguesa, à pesquisa metafísica; em prosa, à narração de Samuel Beckett, a revolver as entranhas do ser humano mesmo no que ele tem de mais asqueroso e visceral, de mais repelente e mortal. Hilda Hilst só será compreendida à medida que o tempo passar, exatamente como aconteceu com a obra de Guimarães Rosa, que só depois de trinta anos de sua estreia é que começa a ser reconhecido como a descoberta de um novo continente da linguagem, como Joyce e Virgínia Woolf o foram em inglês, Robert Musil em alemão ou Carlo Emilio Gadda na Itália moderna.

Para os leitores, há duas facetas de Hilda Hilst. Há a poetisa de Poesia 1959/1967 (edição da autora) e de Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, edição de raro bom gosto de Massao Ohno, que colaborou também com a artista Anésia Pacheco Chaves em um planejamento gráfico primoroso. E há a Hilda prosadora, vigorosíssima, difícil à primeira abordagem, em seus livros magistrais: Qadós (Edição Edart, 1973) e o fascinante Fluxofloema, publicado na série de “Textos em ficção”, numa esplêndida iniciativa da rigorosa e qualitativamente exemplar Editora Perspectiva, de São Paulo, em 1970.

É pouco como tributo à admirável renovadora de toda a concepção da linguagem na literatura brasileira dos últimos trinta anos. É lógico que depois de Guimarães Rosa editoras inteligentes publicaram livros fundamentais: novos contos de Dalton Trevisan, de Clarice Lispector, romances de Ariano Suassuna e de José Cândido de Carvalho e contos ou romances de autores jovens e importantes, como, entre outros, João Antõnio.

É pouco porque já era tempo que críticos que escrevem em jornis e revistas do Brasil e professores de literatura que lecionam nas capitais ou faculdades do interior estudassem e divulgassem a grandeza singular dessa verdadeiraa Esfinge literária do Brasil atual, que colaborassem para o conhecimento de vastas camadas de público da sua vital importância para a sobrevivência da inteligência sensível neste país de cultura secularmente abandonada por todos os governos estaduais, municipais e federais, desde a vinda de D. João VI à Bahia em prinícipios de 1800.

Hilda Hilst é uma escritora de prosa desafiadora, que não faz concessões ao leitor. Não é fácil. É profunda. É magnífica, embora árdua. Mas para chegar a seu âmago, para decifrar sua mensagem, a recompensa é milhões de vezes maior do que o esforço despendido.

A escritora sente um amargo desalento pelo silêncio que se faz diante da sua obra ainda cercada de total desconhecimento quase. Escreve para o teatro. Publica poemas. Sem resultados, a não ser muito escassos: no meio da noite, de madrugada, seus editores irados lhe telefonam para lamentarem que seus livros deram prejuízo, estão encalhados são um investimento desastroso.

Hilda Hilst desespera-se ainda mais.

Tímida, elegante, não é capaz de “vender”, de “promover” a sua obra. Não circula em “rodinhas” literárias. Não tem ânimo para enfrentar plateias universitárias, com medo das perguntas que lhe possam fazer. Não procura jornais, revistas nem canais de televisão para impor sua criação. Que, no entanto, é uma criação coesa, incomparável em termos de perfeita adequação estética às metas que a prosadora paulista se propõe. No mundo da língua portuguesa, só ela. Guimarães Rosa e Fernando Pessoa documentam, cada um a seu modo, uma inquietação filosófica e mística de píncaros tão altos e de tão hermética severidade para consigo mesma.

Lírica cantor do amor em versos que traem vestígios eruditos de Camões, de Catulo, de Vergílio, ela é a sensibilidade aguda que, como Fernando Pessoa ou Rilke, capta a essência do efêmero humano e tece um hino à vida vibrante, intensa, de agora, de aqui, da carne e do espírito em fulgurante fusão. Depois do êxtase, aceita resignadamente o abandono, a tristeza, a chegada inexorável da morte.

Já como contista – se é que se pode rotular tão sumariamente o tipo de criação que lhe é peculiar na prosa – Hilda Hilst lembra textos orientais da Índia, do Japão, da China. O longo monólogo de Fluxofloema, o monólogo em que Koyo e Haydum (o homem perecível e um Deus incogniscível ela sua crueldade? Um tótem e seu adorador que o interpreta? Uma batalha com o anjo vencida pela divindade contra o mero mortal?) se defrontam é o conto mais inquietante de todos já publicados no Brasil, desde “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa.

Solitária em sua fazenda no vale verdejante perto de Campinas, ela se desconsola. Deixa, temporarimente de escrever, à espera justíssima de um reconhecimento nacional e internacional de sua singularidade qualitativa como grande escritor universal.

Por isso, atualmente, prefere captar as vozes dos mortos, em noites inteiras durante as quais grava sussurros frases inteligíveis e impressionantes de mortos que a chamam e falam com ela. Repete as experiências de Jakobson, na Suécia; os feitos cientificamente inexplicáveis de médiuns na União Soviética, oficialmente ateia e que, no entanto, possui mulheres capazes de leram livros fechados em cofres, e de gurus da Índia que desafiam as leis da biologia passando 40 dias sem se alimentar, controlando as batidas do coração e disciplinando a respirção como ensinam há milênios os textos sagrados do Baghavad Gita, dos Vedas, dos diferentes ramos da yoga.

A escritora Hilda de Almeida Prado Hilst cansou-se prematuramente de ser entendida pelos vivos. Não sabe que seu mundo modelado com intenções tão radicais quanto as de Mallarmé, na poesia moderna, e de Kafka e Proust, na prosa, é uma semente. E no Brasil, embora a terra seja fértil, brota e cresce, como aquela valsa de Debussy La plus que lente, a um ritmo exasperantemente vagaroso. Mas cresce. Como todo talento inestinguível, sua obra se afirmará, apesar de todos os obstáculos. Como diria Soljinitsin: a verdade pode ser ocultada durante muito tempo mas afinal tem sempre a força incoercível de uma Lei inviolável na Natureza, uma ecologia que o homem não pode transgredir. E a obra em prosa – maior – e poética – menor – de Hilda Hilst irá impor-se, como a de Proust, dans le Temps, com o tempo, seu grande aliado, ao contrário do que a sua impaciência possa levá-la a crer.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Hilda Hilst. Em prosa ou poesia, a raridade de uma obra à frente de seu tempo .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.