O professor Patrick e seu autor favorito: Shakespeare. Entrevista a P. Swinden

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977/07/23. Aguardando revisão.

Quando o fotógrafo vai tirar seu retrato, o jovem professor Patrick Swinden, uma das dez maiores autoridades da Inglaterra em Shakespeare, se desculpa com um sorriso por não estar usando um ruff aquelas golas franzidas típicas de 1500, da era elizabetana que ele focalizou durante uma semana na Cultura Inglesa de São Paulo.

Convidado conjuntamente pelo professor Carlos Daghlian, presidente da Associação Brasileira de Professores Universitários de Literatura Americana, Língua e Literatura Inglesa (ABRAPUD e pelo British Council, sob os auspícios do professor Charles M. Chadwick, diretor regional do Conselho Britânico, o prof. Swinden é famoso por seu livro An Introduction to Shakespeare's Comedies, mas não limita seu interesse a Shakespeare. Outros Iivros seus incluem discussões sobre a novela psicológica de Flaubert e a novela sentimental de Dickens e as implicações dos dois novelistas como críticos das suas respectivas sociedades, francesa e inglesa (Unofficial Selves: Charac ter in the Novel From Dickens to the Present Day).

Lecturer de Língua e Literatura inglesas em Manchester, Patrick Swinden ficou encantado com a hospitalidade que os estudantes da Cultura Inglesa do Recife lhe proporcionaram, achou que um cartaz da praia de Ipanema com algumas das mulheres mais elegantes do mundo exposto na famosa praça londrina de Piccadilly Circus aumentaria o turismo britânico rumo ao Brasil em "aproximadamente 100% e agora anda com uma lista de livros que tenciona ler quando voltar à Inglaterra, depois de passar por Curitiba e Porto Alegre, onde encerrará seu cicio de conferências shakespeareanas no Brasil. No seu caderno de notas estão: Dom Casmurro, de Machado de Assis; The Vampire of Curitiba and other Stories de Dalton Trevisan e The Third Bank of the River título dado nos Estados Unidos à tradução das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Depois de encerrado seu seminárrio shakespereano em São Paulo, com a exibição de filmes e a concentração em três peças, Sonho de uma Noite de Verão, Hamlet e Ricardo III, O Prof. Swinden concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal da Tarde.

LGR - Cada época viu Shakespeare de uma forma peculiar, como sabemos. Os puritanos extirparam de suas peças tudo que pudesse "ofender a moral e os bons costumes", criou-se até em inglês o verbo bowdlerize seguindo o censor Thomas Bowdler, que em 1818 eliminou todas as passagens que achou "indelicadas" dos textos vitalíssimos de Shakespeare, não é verdade? Como, em 1977, com toda a pesquisa contemporânea, se vê o indivíduo que fala ou se oculta por trás de personagens tão célebres como Romeu e Julieta, Brutus, Otelo, o Rei Lear, a Kathryn de A Megera Domada e as fadas e duendes de Sonho de uma Noite de Verão?

Patrick Swinden - É preciso não esquecermos que só recentemente é que estamos vendo as peças de Shakespeare representadas sem expurgos nem adições. Você anteriormente mencionou o período da Restauração da monarquia (1660-1688), pois desde então até já quando estamos bem adentrados não só no século 18 como até no século 19, Shakespeare foi representado seguindo-se edições corrompidas, apócrifas, não só com omissões à la Thomas Bowdler como com adições feitas por poetas de várias épocas subsequentes.

LGR - Essas partes acrescentadas por outros tinham que função?

Swinden – “Melhorar” seus textos, porque ele era considerado um gênio, sim, não se negava isso, mas um gênio "bárbaro", sem refinamento literário suficiente. Só a partir do final do século passado e agora, no século 20, é que essas excrescências ou cortes foram eliminados. Graças à rigorosa pesquisa crítica das peças empreendida no século 19 por peritos ingleses e alemães é que se pôde obter a verdadeira fisionomia de Shakespeare, sem as deformações que lhe foram impostas arbitrariamente. Sem dúvida, o grande livro pioneiro nessa tarefa foi o de Bradley, sobre as grandes tragédias de Shakespeare. Comparando as versões originais, elizabetanas, com as versões forçadas pela era vitoriana, de moral rígida, foi possível escolmar os textos das atitudes “moralizantes” que se impunham artificialmente às peças de Shakespeare e a seus personagens.

LGR - E que transformações surgiram agora que estamos em 1977, com referência aos protagonistas das peças históricas, tragédias e comédias de Shakespeare?

Swinden As transformações começam com as peças históricas (como Ricardo II,

Ricardo III, Henry IV etc.), que são não só históricas, mas fundamentalmente dramas políticos. São peças não só sobre o poder como também sobre a manutenção da ordem no Estado e o tipo de ordem que deveria prevalecer. E tudo indica que Shakespeare, pelo menos intelectualmente, tendeu para uma visão predominantemente conservadora sob o ponto de vista político.

LGR - O que o torna automaticamente detestável para a Esquerda, não?

Swinden - Ah, sim, já se fizeram muitos ataques partidos de esquerdistas contra Shakespeare, por essa visão conservadora. Houve também várias tentativas da Esquerda de perverter as suas peças, fazendo-o endossar pontos de vista que são diametralmente opostos aos de um conservador. O que não está totalmente errado, aliás, porque nas suas peças, embora ele endosse uma visão, como eu disse, conservadora, sem dúvida, há elementos nelas que...

LGR - São ambivalentes?

Swinden - Ambivalentes. Por exemplo: Henry V, que foi levada à tela com Laurence Olivier no papel principal, em 1944, e que foi exibida para as tropas inglesas e aliadas que estavam prestes a invadir a Normandia em 1944, é sem dúvida uma peça nacionalista, altamente patriótica; mas antes de batalha de Agincourt, o Soberano Inglês, Henry V se irmana com os soldados rasos, vestindo a mesma couraça que eles e pela primeira vez apreende as verdades do povo, vê os soldados como eles realmente são, o que eles pensam realmente a respeito do militarismo, da guerra, da política etc. Portanto, dependendo das intenções de quem monta, digamos, essa peça de Shakespeare, pode-se dar ênfase a um aspecto, o da propaganda política patriótica ou ao outro, o da irmanação com as classes mais baixas da sociedade feudal. Um dos nossos dramaturgos radicais de Esquerda, John Arden, escreveu uma famosa carta a uma revista de Esquerda, New Statesman, creio que em 1964, criticando o crítico de teatro do periódico por não ter visto esta "peça dentro da peça" que há, sem dúvida, em Henry V, aquela peculiar capacidade de Shakespeare de analisar os conflitos de opinião e inspecionar seus próprios valores conservadores, valores que ele compartilhava com a vasta maloria do seu público coetâneo.

LGR - No entanto, Shakespeare prefere os valores aristocráticos de uma elite social e intelectual e que são os valores que ele considera ideais?

Swinden - Sem dúvida.

LGR - E ele não aceitaria as teses de um Rousseau, segundo o qual deve haver um contrato social por meio do qual os governados consentem na maneira pela qual se submetem aos governantes?

Swinden – Não, tanto que em seu livro muito interessante sobre o assunto o professor John Danty (Shakespeare's Doctrine of Nature) focaliza Shakespeare como uma personalidade muito complexa, a meio caminho entre os valores novos da Renascença inglesa e os velhos conceitos aristocráticos da era medieval, de ordem, dever, realeza, hierarquia social imutável, inadmissibilidade da rebelião como a desencadeada por Macbeth ou por Bolingbroke ambos usurpadores do trono, assassinos de monarcas legítimos um na peça do mesmo, outro em Richard II.

LGR - De modo que Shakespeare hoje em dia pertenceria à ala esquerda do Partido Comservador da Sra. Thatcher?

Swinden – É exatamente o que estou dizendo: em Shakespeare há un equilíbrio e um constante questionamente das posições que assume e defende. Tomemos outra peça, o Rei Lear: de um lado há sociedade ordeira, hierárquica, que depende enormemente da lealdade pessoal dos súditos ao Soberano...

LGB - uma sociedage estável e aristocrática?

Swinden - Sim, mas em primeiro lugar competindo com esse tipo de estrutura social que é quase rural há outra sociedade, a que existe em torno do Rei. Bem, em primeiro lugar Lear é o primeiro a romper essa sociedade com seu desejo egocêntrico de ele ser quem decide tudo, de forma absolutista. Ele tem a intenção de desfazer as malhas dessa sociedade e é justamente o que empreende so dividir seu Reino entre três pessoas, suas três filhas, que têm três maridos, dois dos quais, pelo menos, malignos como suas esposas. Lear paga por romper essa estrutura e permitir a degradação social que é dar o poder aos egoístas, aos ambiciosos, ele inverte a Ordem cosmológica na qual tem que haver um Sol em torno do qual os planetas são por força, satélites, ou a Ordem da Natureza que institui um animal, o leão, como seu Rei. As filhas, Goneril e Regan, não tem noção de dever social, o Deus que elas adoram é o tosco apetite pelo poder, daí, como corolário da transgressão da Ordem, Lear abre as portas para as dissensões as lutas pelo poder, a anarquia.

LGR - Então as irmãs sequiosas de poderio são tão condenáveis moralmente e hierarquicamente, na visão de Shakespeare, quanto Ricardo III, que assassina todos os sucessores ao trono que significam um obstáculo à sua sanguinária coroação?

Swinden - São muito similares: Goneril e Regan são dramaticamente descendentes de Ricardo III por almejarem mais do que sua situação hierárquica na sociedade lhes permite, portanto Shakespeare vê nisto um mal um rasgo de individualismo que leva à abolição do escrúpulo e contraria as leis da Natureza, opondo-se ao Rei cujos interesses ele representa e que coincidem com os interesses globais da sociedade.

LGR - Como você sabe, Tólstoi detestava Shakespeare, por considerá-lo amoral diante das ações de seus personagens...

Swinden - Há até livros sobre o assunto. explicando que eram problemas pessoais de Tólstoi que ele projetava na dramaturgia de Shakespeare, passando a detestá-la.

LGR - Do ponto de vista moral ou social constatamos que tanto os heróis virtuosos como os vilões mais sórdidos morrem da mesma maneira violenta, Otelo e Desdemona como Yago, o Rei Lear como Cordélia e as filhas monstruosas, a punição e a recompensa são as mesmas para os “bons", digamos assim e para os”malignos”, não?

Swinden - Tanto é assim que no final das tragédias o palco está coalhado dos cadáveres tanto de uns quanto de outros. No entanto, e esse ponto me parece de capital importância, mesmo se Cordélia e Hamlet morrem, seus corpos jazem assassinados, o espírito de virtude que eles representam continua, por meio de outros personagens, a viver depois que a tragédia terminou. Tólstoi não compreendeu que Shakespeare, obliquamente, toma partido por protagonistas que representam virtudes éticas, espera que haja continuidade, mas demonstra dúvida quanto a vitória final da Virtude, uma vez destruída a estrutura social ritualizada, hierárquica, estável. Não se pode infringir a Organização social, como faz o Rei Lear...

LGR - Ou Ricardo III?

Swinden - Ou Bolingbroke, usurpador do trono em Ricardo II. É verdade que as classes baixas são representadas ou como um perigo, quando formam a turba, ou como personagens cômicos, vulgares, quando se incorporam em indivíduos, a não ser uma exceção como o soldado raso Williams, em Henry V.

LGR - Mas as ações partem sempre da aristocracia, em suas peças?

Swinden - É verdade, bem como a formulação de idéias intelectualmente mais complexas e refinadas.

LGR - E filosoficamente, há uma mudança ou evolução detectável em Shakespeare, desde uma peça tosca, calcada em Plauto, como A Comédia dos Erros, uma de suas primeiras, cronologicamente, até à magnifica peça final, A Tempestade?

Swinden - Bem, há uma distinção a fazer. No seu período de "aprendizado", se se puder dizer assim, Shakespeare se baseia em modelos latinos e italianos, como A Comédia dos Erros, Titus Andronicus e até Romeu e Julieta: são peças de enredo simples e sem originalidade. À medida que ele "progride", ele não só adquire um maior controle de enredos mais labirínticos como enfoca certos estados de espírito os quais, por sua vez, frutificam em idéias novas, mais ricas e matizadas. Depois de dez anos de amadurecimento de estilo e aprofundamento psicológico, por volta de 1600, sobrevém Hamlet...

LGR - Que você considera o grande divisor de águęs dos dois períodos, de aprendizado e de amadurecimento?

Swinden - Creio que sim, embora já com Richard II, que é anterior, ele já tenha chegado, pelo menos nas peças históricas, a esse divisor a que você se refere. Com o personagem de Brutus, por exemplo, em Júlio César, dispomos de um protagonista muito propenso à reflexão, à introspecção; como Hamlet, ele é um personagem que se atormenta com o estado das coisas do mundo externo e inspeciona sua consciência e suas sanções ou desaprovações de ações externas, além de meditar sobre o que é, em sua essência, a vida. Shakespeare através deles tenta compreender quais são as molas da vida e das ações humanas. Como todos os grandes escritores ele está investigando a conduta do ser humano e o porquê desses vários tipos de conduta Que efeitos terão as ações no plano moral, no plano político?

LGR - E no plano estético também?

Swinden - E no plano estético também, o que é o caso fundamentalmente de Hamlet, que está muito interessado no teatro, ele é um grande esteta, preocupado em discernir entre a realidade e a ilusão

LGR - Hamlet é um artista frustrado?

Swinden - Acho que sim, como Ricardo II também, ambos não são homens políticos, são artistas, enquanto Brutus está empenhado na repercussão da ação sob o ponto de vista da moral, dos escrúpulos, da consciência. Em Hamlet a ética e a estética se fundem, ao passo que Brutus detesta a tirania, a elevação de um César à categoria de um deus, o que simboliza a volta à condenação, pelos dramaturgos da Grécia Antiga, do excesso de orgulho e ambição humanos que leva os poderosos à decadência e que, como você sabe, os gregos denominavam de hubris.

LGR – E A Tempestade seria como que um testemunho derradeiro de Shakespeare? Você vê Próspero como o artista, o mágico, o filósofo?

Swinden - Em parte, sim, existe isso, mas Shakespeare não deixa de mostrar também que a arte tem seus limites. Como Shakespeare, Próspero pode, durante algum tempo, manipular algumas pessoas e produzir uma auprema obra-prima artística. Mas A Tempestade é das raríssimas peças de Shakespeare que respeita as unidades aristotélicas de unidade de ação no tempo e no espaço: a perfeição, Shakespeare parece dizer-nos, é limitada no tempo e no espaço. Tanto a moral quanto a estética permanecem ideais efemeramente apenas.

LGR - Então o verdadeiro Shakespeare é o que desilude a filha de Próspero, Miranda, quando ela diz "Oh, que admirável mundo. novo!" acrescentando: “É porque é novo para ti”?

Swinden - Não: Shakespeare incorpora os dois: o idealismo romântico e a experiência que traz a sobriedade.

LGRVocê quer dizer com isso que Shakespeare, no final, é um cético?

Swinden - Shakespeare já se tornara um cético muito antes de se retirar da vida pública e de escrever A Tempestade. Mais ou menos por volta de 1599, devido talvez às suas leituras de Montaigne (e nenhuma inteligência é capaz de nos inculcar mais ceticismo do que a contida nos Ensaios de Montaigne. A proclamação do Renascimento de que o homem é um ser esplêndido, o centro do universo, entra em conflito com a visão das limitações intrínsecas do ser humano. Nem, do ponto de vista religioso, ele me parece uma personalidade religiosa, embora se tenham escrito livros para provar que ele era um agnóstico, um ateu, um católico etc.

Shakespeare possui em dose suprema a qualidade que (o poeta romântico inglês) Keats chamou em suas cartas de "capacidade negativa", que é a marca inconfundível do artista, isto é, o artista se mantém objetivo diante da sua criação, sem endossar nenhum partido ou protagonista específicos. Possivelmente Hamlet é o personagem que tem mais características em comum com Shakespeare e é o heról mais fascinante para a maioria dos que veem ou leem uma peça de Shakespeare. Mas como o próprio Hamlet diz, ele não quer que ninguém devasse seus mais recônditos enigmas ou penetre em seu mistério mais profundo. Shakespeare permanece válido há quatro séculos pela sua versatilidade, originalidade, universalidade. Ele não tenta subjugar a inteligência nem a sensibilidade: ele as libera.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O professor Patrick e seu autor favorito: Shakespeare. Entrevista a P. Swinden .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.