O Nobel para a luta contra a tirania

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1970/10/09. Aguardando revisão.

Alexander Solzhenitsyn irá a Estocolmo no dia 10 de dezembro, receber o prêmio Nobel de Literatura de 1970? Ou o governo russo não o deixará viajar, repetindo o que aconteceu com Boris Pasternak em 1958? Solzhenitsyn já declarou que aceita o prêmio e está disposto a viajar. Isso, foi o que ele disse ao jornalista sueco Per Hegge, que o entrevistou por telefone. No entanto, foi só através desse correspondente que o autor de O Primeiro Círculo teve a confirmação da notícia: antes, só soubera do prêmio através de amigos. Essa falta de reações oficiais está levando os observadores ocidentais a acharem que se pode repetir o “caso Pasternak”. E a situação pode agravar-se porque , se o escritor não é simpático ao governo soviético, a Academia Sueca, justificando o Nobel de 1970, elogiou em Solzhenitsyn “a força ética com que está prosseguindo as tradições indispensáveis da literatura russa”. Antes, a Academia já havia recebido – nas últimas semanas – dezenas de cartas de escritores ocidentais indicando Solzhenitsyn para receber o prêmio. Miguel Angel Astúrias, Nobel de 1967, não defendeu sua candidatura, mas depois que soube da premiação, também o elogiou: “Solzhenitsyn é um homem que escreveu com uma grande responsabilidade, interpretando o sentimento de seu povo. O prêmio confirma que a Academia prefere as obras que se responsabilizam pelo homem e e ante o homem.

A grande romancista inglêsa Virgínia Woolf situou de forma original e marcante a situação da grande literatura russa traduzida. Para os leitores não-eslavos e que ignoram a língua russa, autores como Tolstoi, Tchekov e Dostoievski surgem como viajantes requintados, sobreviventes de um desastre de trem e dos quais não sabemos praticamente nada, a não ser o que nos revela sua aparência. É o aspecto formal que nos falta para aprofundar nossa apreensão de obras-primas como Guerra e Paz e Os Irmãos Karamazov. O estilo se dilui inteiramente: as nuances dos sinônimos, o ritmo da frase, o colorido das raízes populares.

Como isto não impede que se julgue a grandeza intrínseca de uma literatura, os contos pungentes e sóbrios de Tchekov, o conflito de pais e filhos descrito por Turgeniev, a sociedade russa espelhada nos romances de Tolstoi – tudo confirma a nossa visão de uma literatura apaixonante.

Solzhenitsyn para mim é, portanto, um autor que conheço obliquamente, por meio de traduções (e Borges já mostrou quantos Homeros diferentes podem surgir do engenho e da sensibilidade diferentes de diferentes tradutores!). Mas um confronto de suas obras principais nos principais idiomas europeus permite talvez reconstituir uma parte pelo menos do seu estilo original. Solzhenitsyn, então, do ponto de vista puramente literário, é um autor seco, preciso, às vezes quase científico na sua precisão despojada. O que corresponde à imagem “russa” que temos da literatura aparece nele através de jatos bruscos e breves de uma afetividade contida e impetuosa.

Seu fogo interior, que eclode em acessos de indignação contra o regime totalitário que o marcou durante nove anos de trabalhos forçados num campo de concentração stalinista, na maioria das vezes é disciplinado pela mente lógica, lúcida, de um matemático acostumado à frieza imparcial dos resultados e dos cálculos numéricos.

Em segundo lugar, aparece claramente um desnível qualitativo na sua produção contrabandeada para o Ocidente. Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch tem muito do relato objetivo que se torna apavorante pelas situações que focaliza, como um farol que iluminasse repentinamente, à noite, um campo de concentração. Seu realismo tocado de naturalismo – as condições higiênicas da prisão, o sadismo dos guardas, as funções biológicas descritas sem melindres – trai um ódio reprimido por um regime que transforma “a vida de um homem, a única que se tem” naquela massa informe que só pensa em sobreviver biologicamente e que conserva, indômita, sua resistência ao banditismo armado de uniformes, leis, doutrinas e celas solitárias.

O Pavilhão de Cancerosos é um livro que, francamente, cansa pelo ritmo excessivamente lento de seu desenrolar-se de episódios, apresentação de personagens e minúcia de terminologia médica. Além disso, o personagem central, autobiográfico, reflete demais a rabugice, que raia no histerismo, de um doente rebelde. Se a lembrança de sua situação, do estado avançado de seu tumor maligno no pescoço e, sobretudo, a soma de injustiças e indignidades que ele sofreu num regime acentuadamente desumano reconciliam o leitor com ele e o levam a interessar-se mais pelos protagonistas desse relato que só adquire dramaticidade à medida que revela, simbolicamente a degradação clínica que mascara a degradação humana gerada pela opressão política.

De todos os seus livros, sem dúvida, a obra-prima é O Primeiro Círculo. Não porque, eruditamente, se inspire numa citação de Dante Alighieri e se refira ao limbo em que são colocados, nos dois infernos, no florentino e no soviético, os personagens demasiado importantes e impolutos para serem consumidos pelas labaredas da morte física ou da tortura post-mortem na alegoria religiosa.

Com O Primeiro Círculo, Solzhenitsyn identifica-se mais com seus personagens, deixa entrever ao leitor uma adesão muito mais apaixonada ao destino dos que se opõem à desumanidade de um regime, mesmo com sacrifício de sua liberdade e de suas vidas já minadas pela doença e pelo encarceramento. As comparações frequentes que se fazem, na França, na Itália, nos Estados Unidos, entre O Primeiro Círculo e Recordação da Casa dos Mortos de Dostoievski são apenas um recurso simplista. As Recordações não têm a dimensão infinitamente mais ampla do Círculo: retratam um fragmento da sociedade russa: os criminosos e os opositores políticos do despotismo tzarista. Dostoievski compadece-se dos ladrões e assassinos impulsivos que compartilham o seu degredo, infunde-lhes uma visão mística, reconhece sua bondade, e mesmo sua candura e sua inocência submersas por um delito fruto de um impulso e não de um desígnio calculista.

O Primeiro Círculo, ao contrário, não entre em problemas tão individuais e tão particularizados: grava a fogo o mural de uma opressão monstruosa, que se estende a toda uma coletividade, que amordaça e mutila todo um povo. Profético, O Primeiro Círculo prevê a incompatibilidade que só recentemente Amalrik, outro intelectual russo caído em desgraça com o regime de Kossigin, diagnosticaria corajosamente: o progresso cultural e social de uma nação é incompatível com a censura, com a polícia secreta, com a ditadura. Na época em que Stalin proibia as pesquisas genéticas de Lisenko porque contrariavam dogmas marxistas e leninistas, essa percepção era ignorada pelas massas, até mesmo nos centros universitários.

Só Solzhenitsyn formularia claramente essa verdadeira Lei de Incompatibilidade que traria tão funestas consequências para um sem-número de artistas e intelectuais russos: Nureyev fugindo para o Ocidente por achar que o balé estagnara na URSS, Kuznetsov escapando à vigilância russa em Londres, Valery Tarsis sendo “deportado” para a Ingraterra, depois de internado, como louco num hospício estatal para opositores políticos, Daniel e Siniavsky condenados a trabalhos forçados por críticas ao regime soviético, Pasternak, proibido de receber o prêmio Nobel por ordem de Kruchev, que o acusava de “sentimentos anti-soviéticos” (permitir que sua novela Dr. Jivago fosse contrabandeada para o Ocidente).

Feita estas ressalvas, seria desonesto ocultar ao leitor brasileiro que, como acontece com 90% das traduções no Brasil, os livros de Solzhenitsyn foram vítimas de traduções não muito felizes em português.

Pavilhões dos Cancerosos, comparada com a versão americana, mostra deslocamentos de frases que misteriosamente “resvalam” de um parágrafo para outro ou se “antecipam” com igual mistério alguns parágrafos à frente.

O Primeiro Círculo é uma colcha de retalhos: foi confiada sua tradução a um grupo de alunas da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, Seção Literatura Inglêsa (sic). A tradução, consequentemente, foi feita da tradução americana, que a revista Time apontou como absurda e incompreensível em certos trechos. Há capítulos bem traduzidos, há outros que elevam o absurdo da tradução ianque a dimensões não mais texanas, mas já auriverdemente amazônicas.

Por fim: Solzhenitsyn é um grande escritor ou sua fama foi “inflada” artificialmente pelos dividendos políticos que rende a um anticomunismo tão cego quanto o comunismo que ele próprio combate? Dentro de uma literatura amordaçada, sem contatos com a renovação literária de um Proust, de um Joyce, de um Kafka, de um Beckett, de um Guimarães Rosa e de um Jorge Luís Borges, ele é, sem dúvida, um expoente de primeira categoria. Mas, guardadas todas as proporções, não chega a ser o Tolstoi contemporâneo nem o Dostoivsky deste meio-século. Mesmo O Primeiro Círculo não atinge a grande arquitetônica de Guerra e Paz ou a simplicidade comovedora das parábolas místicas tolstoianas como A Morte de Ivan Ilitch.

Um grande escritor político e um grande humanista, uma extraordinária sensibilidade humana que se rebela contra a tirania, contra a castração da liberdade de aprendizado, de informação e de criação artística – estas características – que são em grande parte o cerne de todas as discussões ideológicas do mundo politizado atual – distinguem sua obra e o marcam indelevelmente como um expoente trágico de uma era intelectualmente pré-histórica: a que põe em discussão ainda conceitos fundamentais como os da liberdade, da consciência e da dignidade humanas.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O Nobel para a luta contra a tirania .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.