A morte, saudada em versos iluminados. Por Hilda Hilst

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 18 de outubro de 1980. Aguardando revisão.

“Todos os dias conduzem à morte, o último chega a ela” Sêneca

O decurso dos anos aproxima o poeta da meditação sobre a sua própria extinção. Hilda Hilst que escree há vários anos a mais abissal e deslumbrante prosa poética do Brasil posterior à genialidade de Guimarães Rosa, distingue-se pela versatilidade de sua inspiração. Ficcionista incomparável pelo uso de uma linguagem original e indelével, ela é também um dos grandes nomes nada efêmeros da poesia mais profunda e comovente que se faz no Brasil, além de uma extensa obra de dramaturgia inédita.

A morte, a transitoriedade da condição humana, as metamorfoses do tempo foram desde a antiguidade clássica e mesmo antes dela temas filosóficos em si que inspiraram Lucrécio, Catulo, Safo, Anacreonte, Cícero, Sêneca e o próprio Sócrates que ao saber que os tiranos da Grécia o tinham condenado à morte redarguiu prontamente: “E à morte os condenou a natureza”. Mais recentemente, em suas memoráveis reflexões sobre o estar-no-mundo, Albert Camus colocou a morte como centro único da vida, para o qual convergem todos os pensamentos e ações humanas, um eco sem dúvida da meditação de Cícero segundo o qual filosofar nada mais é do que preparar-se para o advento da morte.

Hilda Hilst já cantara, em seu volume de poemas mais recente, com um aticismo digno dos grandes clássicos greco-latinos, o esplendor do júbilo, da memória e do noviciado da paixão – uma paixão que engloba o corpo e incorpora a mente que reflete sobre as sutis conexões entre a palpitação da carne a e apreensão de uma dimensão de êxtase por parte do raciocínio parcialmente incólume ao arrebato dos sentidos e que se contempla e deduz lapidarmente sobre seu estado de exaltação sensorial. Já nessa magnífica coletânea distinguiam-se nitidamente a celebração ritual de uma aceitação estoica da destruição da fruição do corpo e a eternização shakespereana do momento através da palavra que sobrevive ao frêmito mortalmente humano.

Agora, modestamente, ela intitula de Odes Mínimas as que dedica à fase que vislumbra como a aproximação do fim dos seus dias e que, fiel às suas raízes clássicas, ela abrange sob a denominação ampla e culta de Da Morte. Desde o intróito, com ilustrações da próprias e coloridas que denotam uma nova faceta da sua inventividade, há a funda nota da humanização, da personalização do conceito abstrato da morte através de um lirismo pungente:

“… Vivi nos altos de um monte

Tentando trazer teu gesto

Teu horizonte

para o meu deserto.”

Como haicais ocidentais, na sua concisão seus versos aludem à abstração de tudo e sua equiparação talvez com a destruição total até mesmo da memória, do “eu” individualizado e com a intuição profunda de que para o intrinsecamente limitado acervo de percepções humanas meditar sobre a morte é envolver-se ainda na vida, incapaz de abranger o estado do não-ser:

“Um peixe raro de asas

As águas altas

Um aguado de malva

Sonhando o Nada.”

O poeta – inutilmente – apela para as marcas de sua presença humana amada que humanizem a morte, “numa tarde de sombras/ fui teu passo” e tenta irmanar a morte à busca individual de uma resposta que não veio: “Te conduzia pela eternidade/ À minha casa”. É porém no cerne dos 50 poemas que a poesia dialoga diretamente, seja nomeando a morte por meio de termos diferentes, seja por equipará-la, como nos famosos versos de John Donne, a uma derrotada, ela também, a morte percebida como mortal: “E cantar teus nomes perecíveis”.

Nada há, nestes poemas, de rilkeano, de combate com o anjo da morte, de oposição à decadência inevitável: há a noção clara de que em embrião já carregamos o gérmen da morte no nascimento, como na famosa citação do ensaio de Montaigne sobre tudo que é efêmero e sobre a naturalidade da morte, a única certeza inexorável com a qual contamos: “Pertencente te carrego:/ Dorso mutante, morte”, até o reconhecimento crucial da espantosa harmonia, do monstruoso sinônimo do fim que é a passagem impassível das horas, o mortal e a morte irmanados: “Nós, consortes do tempo”.

Hilda Hilst, frequentemente, nestas odes que de mínimas só têm a adjetivação arbitrária que ela lhes quis impor, individualiza o extermínio, apela para que a morte sua adquira feições específicas:

“Demora-te sobre a minha hora.

Antes de me tomar, demora.

Que tu me percorras cuidadosa, etérea

Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres

na sua dura hora.”

Norteada por essa individualização da morte, ela indaga que forma assumirá a sua morte pessoal: “Túrgida – mínima/ Como virás, morte minha?” e rememora momentos humanamente eternizados pela lembrança de um passo febril e flébil, “a boca nos sentimentos”, mas intrinsecamente sempre enlaçada pela morte, inesperado sinônimo da vida que carrega como seu gene biológico de autodestruição por mais involuntário que seja, a destruição concebida como a pan-morte em tudo enleada e soberana de toda palpitação viva: “Funda, no mais profundo do osso./ Fina, na tua medula… Paciente, colada às pontes/ Onde devo passar atada aos pertences da vida./ Em tudo és e estás”.

Não há a intervenção de elementos sobrenaturais que possam poupar o poeta do extermínio individual pré-estabelecido, não há portanto nenhum convite a um pacto de dilação da hora final: “Eu que vivi no vermelho/ Porque poeta” contrasta o talvez inútil do discurso: “A palavra de ouro, de cereja” com o silêncio mais condigno para recepção do instante derradeiro e enigmático: “me calo para recebê-la”, percebendo o “eu” dia a dia deliquescente a inutilidade da fuga e possivelmente da própria vida e toda reflexão sobre ela como, numa das mais originais metáforas da língua portuguesa, meros e ineficazes “Ínfimos sapatos/ Sobre as ilusões”. Ritmicamente de poema a poema os versos vibram com iluminações poéticas que o zen-busdismo chamaria de satori, aquele momento de suprema compreensão das vãs vicissitudes do estar-na-terra, não como lógica ocidental previsível, mas como interligação de contrastes, a vida extenuante em bizarro contraponto simultâneo com a morte, tendo por conduto comum o tempo:

“E sempre te assemelhas

A tudo que desliza, tempo,

Na minha boca. Nos ocos.

No chanfrado nariz,

Rio abaixo deslizas, limo

Toco, em direção a mim.”

Mas se incoercível a qualquer súplica humana, pois já os clássicos asseveravam que “a morte sempre escreve a linha final”, ela tem também outro aspecto, radicado no logos grego que concebe a finitude de tudo: o conceito da morte na mente que se sabe finita:

“Rasteja, voa, passeia

Com toda lenteza

Sobre a mínima Ideia”

A apreensão intelectual da fatalidade a que nada vivo escapa, conduz os poemas a um lirismo comovente, quase que monólogos em que o poeta se equipara ora a uma ignorância na contemplação da morte “montada no teu cavalo (Eu era noite e não via)”, ora a uma sabedoria comovente: “Te vi levíssima/ Descendo numas aguadas/ Lenta descendo como os anzois/ (Eu era peixe e sabia)”. Desse oscilar entre a perplexidade cega e a experiência já despojada blakeanamente da inocência, Hilda Hilst atinge um dos pontos mais altos da sua inventividade poética assemelhando a morte a uma “semente de sons” a um “jato de sol”, numa sinestesia próxima das correspondances de Baudelaire em que os olhos veem o que normalmente só os ouvidos percebem e o sentido tátil capta o que seria domíno exclusivo da retina.

Obviamente, 50 poemas que assediam a morte como fulcro central – e recapitulando as interrogações supremas da prosa poética de introspecção mística de indagação da divindade sobre sua crueldade ou indiferença para com os míseros feitos humanos cifrada em Fluxofloema – variam de tônica de um poema a outro. No de número XX um sopro de John Donne e sua constatação de que a vitória final não pertence à morte perpassa pelos versos que despojam a morte de sua onipotência diante da eternidade que pressuponha a existência de um Deus:

“Teu nome é Nada.

Um sonhar o Universo

No pensamento do homem:

Diante do eterno, nada”

até a postulação hipotética de uma Graça superior que anularia os despojos avidamente colhidos pela morte. As breves elocubrações de cunho religioso, “na humana ideia de um deus que não conheço” cedem facimente a chamamentos e apelos que ressudam ainda da vida: a morte, quando vier, não procure sua vítima poeta “Onde os vivos visitam/ os chamados mortos”. Não: em tudo que palpita de vida, as grandes praças, no sanguíneo fogo do coração, nos arrozais e no arroio “ou espelhada/ Num outro alguém” é que o escolhido será encontrado, no cerne rubro de promessa de uma semente, no gosto vivificante do sal, no comum da vida é que o futuro imolado se encontra, expectante, sem pânico, diante da Chegada em temor. A morte é incognoscível para a mísera apreensão humana, mas seu presságio já deixou marcas reconhecíveis no decurso da experiência humana, no poema lancinante de eloquência que assinala a passagem da morte para os vivos na morte alheia, nas despedidas, nas cinzas e na lembrança do que já foi e se tornou pretérito irrecuperável:

“Te sei. Em via

Provei teu gosto.

Perdas, partidas

Memória, pó

Com a boca viva provei

Teu gosto, teu sumo grosso.

Em vida, morte, te sei.”

Se nos interstícios da existência a morte já estava aninhada, indiferente às denominações e etiquetas humanas de crueldade, indiferença, arbítrio, no além-vida o poeta silenciado com ainda “as grandes palavras/ Trancadas e vivas/ no meu peito baço” sobreviverá à letal dissolução do seu eu no amor alheio, na natureza, irmanando-se sem revolta com a morte no poema talvez mais perfeito desta coletânea, o de número XXXVIII:

“No coração, no olhar

Quando se tocarem

Pela primeira vez

Aqueles que se amam

Eu estarei.

Nas grandes luas.

Nas tardes.

Nas pequenas canções

Nos livros

Eu e minha viva morte

Estaremos ali

Pela primeira vez.

Dirão:

Um poeta e sua morte

Estão vivos e unidos

No mundo dos homens.

Na madrugada.

Pela primeira vez

Em amor

Tocada”.

Se o poeta saudara com júbilo paixão e memória um amor entre o fantasiado e o real, agora sua saudação do fim nada tem de mórbida, ao contrário, há acentos de celebração da lucidez do meio-dia de Camus “No meio-dia te penso./ Íntima te pretendo. Incendiada de mim/ Contigo morrendo”, numa concepção mediterrânea da morte como ápice, zênite de uma fulguração viva e extinta, pagã votada a deuses ignotos.

Na parte final destas odes mínimas coincidem a Morte e a matéria insidiosamente sutil de que ela se nutre e da qual existe: o Tempo. Nenhum vestígio de temor, nenhuma mesquinha litania lamentosa de queixumes de tudo que pode ser enumerado e que será elidido pela Morte-Tempo. O reverso é verdadeiro: a certeza da vinda da barca de Caronte que transportava na antiga mitologia clássica a alma dos mortos através do lago Estige encontra a alma do poeta desassombrada, com um fatalismo desprovido de fanatismo, mas, se for possível essa interpretação, estoico na aceitação corajosa do imutável pelos desejos irrealizáveis humanos: a Morte-Tempo ou Tempo-Morte virá, com “sua fina faca”, punhal dúplice que para os atingidos finalmente “Fecha feridas. É unguento”, para os sobreviventes “pode abrir a tua mágoa/ com a sua fina mágoa”. Violenta ou atrozmente longa, a Morte advirá, independente do estado, condição, idade, nascimento ou regalia:

“Estanca ventura e voz

Silêncio e desventura.

Imóvel

Garrote

Algoz

No corpo da tua água passará

Tem passado

Passa com a sua fina faca”

Nesta bela e cuidada edição de Massao Ohno e Roswitha Kempf, os que não conhecem a altíssima poesia de Hilda Hilst poderão tomar um primeiro contacto com a sua erudição em nada pedante, com a profundidade filosófica do seu canto, com a inquirição sempre colorida de um lirismo contagiante em torno do destino humano delimitado entre o breve gozo, o inexplicável sofrimento e a imensurável morte, tessitura indiscernível dos dias. Para os que já conhecem a importância sem paralelo de Hilda Hilst na criação de todo um universo poético ora expresso em prosa ora veiculado pela poesia, o ritmo, o encantamento, o fascínio das abstrções confirmarão uma vocação que no Brasil só se equipara, em densidade, riqueza e transcendência permanente, à invenção de Guimarães Rosa. Para ambos a vida, rutilante e plural, é uma travessia metafísica, sempre entranhadamente poética e de uma inquirição luminosa do pensamento debruçado sobre o enigma cotidiano do viver.

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A morte, saudada em versos iluminados. Por Hilda Hilst .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.